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A antiga conversa de calçada ainda resiste ao tempo

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Valdir Julião – repórter

O cenário é quase o mesmo, a rua pode ser qualquer uma, mas a chamada “conversa de calçada”, com pessoas sentadas no meio-fio ou numa cadeira, inclusive de balanço, é um hábito persistente em Natal, principalmente nos bairros mais afastados dos centro e onde, ainda, prevalecem as residências do tipo horizontal e arquitetura de um só pavimento.

As vizinhas Francisca, Margarida e Maria se reúnem regularmente para colocar a conversa em diaUma das características dos bairros em que os moradores continuam a cultuar esse costume é o fato de que o casario é conjugado, dividido “parede e meia” entre uma casa e outra, como se diz no interior.  Caso típico das Quintas, bairro da Zona Oeste de Natal: na residência de número 956 da rua Baraúnas todas as tardes é assim, as três amigas Francisca Morais, 60 anos; Margarida Fernandes de Assis, 58 e Maria das Neves de Lima, 62, reúnem-se para bater papo “e jogar conversa fora”, como insinuou uma delas.

Dona Maria das Neves diz que é divorciada e hoje morava sozinha, “perto da caixa d’água da avenida 6”. De lá, contou ela, saiu por cauda da violência e da criminalidade “e o pessoal vive com medo de assalto”.

Agora, ela passou a morar na rua Baraúnas, depois que a amiga  Francisca Morais conseguiu uma casa que pudesse alugar: “Estou aqui há 15 dias, na outra rua ninguém podia colocar uma cadeira na calçada”.

Dona Francisca Morais disse que “mora há 48 anos no pedaço”, oriunda de Santa Cruz do Inharé, “de onde saiu com 13 anos para não levar uma surra da mãe”, com uma trupe de ciganos. “Voltei com 17 e ainda levei a surra”.

Para Francisca Morais, a Baraúnas é uma rua “calma e tranquila”, apesar da proximidade da feira do “Carrasco” que ocorre toda quarta-feira. “Moro aqui há 11 anos e nunca vi nada”.

Outra amiga, Margarida de Assis, diz que seu marido é muito bom, não importuna com ela. “Casei aos 14 anos”, comentou ela, mas já avisando para os filhos que no dia que alcançar a aposentadoria, vai viver andando.

Ela conta que mora em outra rua nas Quintas, mas admite que “quase todo dia” vai à casa de dona Francisca Morais. “Só falta ter tempo”, brinca ela, para explicar que ao anoitecer chegam outros parentes, genro e amigos. “Tem dia que a gente põe as cadeiras para dentro de uma hora da manhã”.

A chance de o trio ficar desfalcado, não é tão remota, porque Maria das Neves cogita de abrir “um churrasquinho” no outro lado da calçada da rua Baraúnas, para complementar a renda.

Enquanto isso não ocorre, dona Francisca Morais diz que o bate papo vai prosseguir. “A gente conversa de tudo, política, pagode, seresta, o papo é legal, saí até macumba, não dá depressão na gente, fica tudo ‘magiclic’”, disse ela, abrindo uma gargalhada.

Em Felipe Camarão, o aposentado José Silvério Sobrinho diz que veio de Jardim de Piranhas, na região do Seridó, onde “também tinha o costume de conversar na calçada”.

Residente da rua Nossa Senhora do Rosário, 48, José Silvério disse que a rua é tranquila e “nunca houve confusão por aqui”. A esposa  Raimunda Fernandes da Silva  disse que “Tem dia que a gente entra em casa de 22 horas”.

Hábito surgiu na zona rural e ganhou as áreas urbanas

Mesmo com o aumento de problemas inerentes a uma cidade em crescimento, o professor do Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Márcio Moraes Valença, diz “algumas coisas mudam, mas nem tudo”.

Daí, Márcio Valença avalia que o costume das pessoas conversarem em calçadas, a partir do entardecer e entrando pela noite, deverá perdurar por muito tempo em Natal.

Valença disse que essa característica é bastante comum dos bairros onde não existe muita verticalização, como também é uma questão da cultura das pessoas, de também não levar pra dentro de sua casa, pessoas com quem ainda não conhece bem: “Só entram na sala os parentes, as pessoas mais próximas e que já ganharam uma certa intimidade”.

Para as pessoas, continuou o professor, “se houver algum conflito é melhor se resolver na calçada do que dentro de sua casa”.

O professor também disse que “vem do interior o hábito” das pessoas se socializarem na porta de casa, coisa que em outros bairros mais centrais da cidade, está deixando de ocorrer, por exemplo, em Petrópolis e Tirol, porque as residências estão dando ou já deram lugar a restaurantes, boutiques, consultórios médicos e outros tipos de negócios.

Segundo Valença, esse é tema muito amplo e complexo, que também tem influências de outros fatores, inclusive de políticas públicas na área habitacional. No caso de Natal, pelo menos ¹/³ dos conjuntos residenciais são horizontais, a maioria construído na época do Banco Nacional de Habitação (BNH), que foi extinto em meados dos anos 80.

Para o professor, essa coisa de conversa de calçada e na rua, é mais comum entre as pessoas de classe média pra baixo, embora atualmente a política habitacional do  governo favoreça mais os conjuntos verticais de blocos de apartamento e dentro de uma faixa de renda específica. “Não não existem mais em Natal grandes glebas e de baixo valor”, explicou ele, ao contrário de municípios vizinhos, onde ainda se constrói unidades habitacionais isoladas e do tipo horizontal.

Outro fator interessante, segundo Valença, é o adensamento de alguns bairros, como as Rocas, que favorecem que as pessoas saiam às calçadas para conversar. Em bairros como esse, afirmou ele, as pessoas constroem onde podem e o espaço para conversar “é la fora”, na rua, onde o trânsito dos carros, em ruas estreitas, nem incomodam tanto.

Para ele, “a percepção do perigo” por causa da violência e da criminalidade também acaba afastando as pessoas dessa forma de se socializar, conversando na rua ou nas calçadas. Ainda assim, ele avalia que o costume vai continuar por muito tempo.

A antropóloga e professora da UFRN Julie Antoniette  Cavignac afirmou que “o costume de se conversar na calçada é um hábito rural e que ganhou as cidades”.

Segundo ela, o costume não veio só pela necessidade da socialização, mas porque era no final da tarde que, na propriedade rural, “era o momento que se acertava-se as coisas” entre os moradores e os donos de terras, dos sítios e fazendas. Por isso, acrescentou ela, essa reunião ocorria mais na casa principal, na sede da fazenda.

Julie Cavignac diz que, no caso de Natal, como se trata ainda de uma cidade pequena, o costume vai persistir por algum tempo, mesmo que em algumas áreas as pessoas estejam se afastando dos espaços urbanos, como as praças, em virtude “do temor da violência”.

Ela também disse que esse hábito de “conversar na calçada” ainda é bem característico de Natal e que surpreende as pessoas de fora, que passam a residir aqui. Tanto é, continuou a professora, que é comum nos bares da cidade, a clientela preferir mesas e cadeiras que ficam nas calçadas.

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