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A Arte de Adriano de Souza

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Napoleão Paiva Souza
Poeta e médico

Caça à palavra
A primeira notícia que me chegou do livro  de Adriano de Sousa já trazia o título, Livro de O. Imediatamente, confesso, fui remetido ao  História de O, clássico francês da literatura erótica, com rasgos de sado-masô, inquilino das listas mais afamadas do gênero, na companhia p.ex. do História do Olho, de Georges Bataille, Trópico de Câncer, Henry Miller, A Casa das Belas Adormecidas, Yasunari Kawabata, * As Idades de Lulu*, Almudena Grandes, Delta de Vênus, de Anaïs Nin, e outros tantos eleitos.

Sinto hoje que viajei longe e alto, talvez por haver no voo repentino uma ponta de satisfação, um desejo escondido de ver o poeta em algum momento versar o universo de Eros – deus do amor, da paixão e erotismo.

Logo logo soube que não, o O do livro de Adriano aludia sim a Oswaldo Lamartine, o sertanista, etnógrafo, o lorde da Acauã  —  o que igualmente me encheu de expectativas, claro que por outras razões.

Seria por ventura o encontro de dois magos da palavra, ambos de carnadura pouca, de rigor de estilo, Oswaldo ainda mais ossudo, um quase lagarto de lajedo e do mato cinza da caatinga, um e outrode prosa e poesia econômica, enxuta, se muito… água de cuia, pouca tinta, pouquíssima, em nítida valorização da concisão

Cada vivente tem o seu sertão
Oswaldinho, como carinhosamente o chamava Cascudo, vindo dos sertões de dentro,  sertão de nunca mais como constatara, vida inteira enfurnado na pátria sentimental,  inventariando-a incessantemente; seus bichos, costumes, criatórios, modos e, sobretudo, seus nomes.

O vate de Alexandria, do universo de pés-de-serras e tabuleiros, da educação pela pedra  e pelo escasso, aluno talvez por isso da  escola do afamado professor João Cabral de Melo Neto, mestre de quem  ex-pe-ri-men-ta  escrever muito com pouco.

Os dois nesse mundão campeando a paixão comum –  os signos, os nomes das coisas. Uns caçam abelha; outros, fortuna; muitos, solidão; eles caçam palavras. O lorde da Acauã: “eu chegava ao ponto de copiar determinadas expressões que tinha esquecido. É aquela saudade da palavra que chega, não sabe?, feito namorado que lê carta de namorada não sei quantas vezes”.

O outro, a buscar na cartografia amorosa e evocativa um filão de expressões, linguagem de pouco uso hoje, deslembrada, sobejo de épocas, a passos do arcaico; não para tê-la simplesmente, mas para extrair-lhe as acepções, recriá-la, recolocá-la onde a frase jamais esperaria, revivescê-la – como o poeta agora no poema Seco:

[…] Lavei as mãos na mágoada pedra. Chorei inverso,

engolindo. Guardei toda água

para a cuia deste verso.

Criação  limpa, exata, verso medido, sem aparas.

Quiçá a pajeú da capa esteja ali a antecipar um recado sutil ao leitor: a gordura, o excesso, toda pelanca ficou no seu gume.

Quando o pouco é muito
Encontro de magos num território interrompido, com ares de sobreviventes, a remexerem baús de signos, de falas, de ossos, de gestos que se ergueram para ter fim no arremessão do tempo. Reencontrar – sob camadas de escombros –  trecos, trastes e teréns, coivaras, aboios, currais de bois de osso, vaqueiros, ferro de ferrar, rastejadores, avoengo, a moça caetana, e Parrudo_, o amigo de Oswaldo, cantado nos versos de Adriano: “Eu amei um cão – ou nem isso: amava era o nome agudo, passando-o de bicho a bicho, pois que, coisa e loisa, tudo está na palavra que o nomeia”.

O autor aqui, como em outros poemas, encarna o sertanista, chama para si seu caráter e identidade, veste com entrega sua persona, e assume O. na primeira pessoa, como no comovente Irmãos :

“Meu Irmão morto bebe comigouma caneca de leite espumado,no curral onde nossos embigosfundiram-se na bosta de gado”.

[…] Oswaldo que se dizia sobejo da seca do 19 é cantado assim pelo poeta da Barriguda: “Fui o último dos meus/ a ponta murcha da rama/ que o hálito de deus/ alevantou sobre a grama”

[…] “Fui o sobejo do Quinze/ e findo em sobejo do mundo/ já findo antes de mim”.

Páginas adiante encontro com surpresa e emoção o poeta erótico que havia eu imaginado lá atrás, ainda no título da obra. Ele mesmo, de corte tão pouco confessional, agora mistura ao obsceno seus versos elegantemente lazarinos.

A força da oralidade nos versos termina por erguer uma poesia de formação (sexual) – como expressão telúrica e verdadeira – que só quem viveu aquele sertão-de-nunca-mais seja talvez capaz de sentir-lhe a fundura.

Assim é Fescenino, poema com o qual Adriano revisita e reverencia  Uns Fesceninos, do também poeta Oswaldo.

Sê a minha bananeira

de talho poroso, macio,

e cede à minha leseira

tua carne triste, sem cio.

Sê a égua no barranco,

mansa quão indiferente;

minha puta, meu cancro,

meu pânico de adolescentes.

Sê a minha carne mijada,

meu verso mais fescenino,

a escorrer pela tua cara

feito esporro de menino.

Apascenta-me os demônios.

Arregaça o meu cabresto.

Faz-me o teu cão sem dono.

Sê a minha morte, o meu texto.

Imagino Oswaldo naquele longo recorrido, de mãos dadas com Adriano, entrando por uma mancha de mato seco e dizendo: meu filho, para mim o sertão é a caatinga. Venha por aqui, devagar, em silêncio, venha ouviro grito da mãe-da-lua que os grandes trágicos nunca ouviram.

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