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A atualidade da salve rainha

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João Medeiros Filho
Padre

Dentre as orações aprendidas na infância, a Salve Rainha era impressionante. Há quem a considere pessimista. Integra o devocionário popular, compondo o rosário mariano, recitado por muitos devotos de Maria Santíssima. Inegavelmente, há certas expressões que pedem contextualização e comentários, como: “A vós bradamos os degredados filhos de Eva”; “a vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas” e “depois desse desterro, mostrai-nos Jesus”. Seu autor é o monge beneditino Germanus Contractus. Viveu no mosteiro de Augia Dives (Suiça), tornando-se um sábio para o seu tempo: filósofo, matemático, físico, teólogo, poeta e músico. Desde a tenra idade, padecia de uma enfermidade, que lhe causava dores lancinantes. Aos sete anos, seu pai, o conde Wolverade, confiou a educação da criança aos monges. Aos vinte e um anos, fez os votos monásticos. Vivia na solidão, maltratado pela doença. Somente a força do espírito e sua fé faziam-no superar as dificuldades. No dia 15 de novembro de 1049, indo para o canto das horas litúrgicas, em meio a uma forte crise, afligindo-lhe o corpo e a alma, suspirou à Virgem Mãe de Deus e compôs a ardente prece da Salve Rainha.

Para a teologia cristã, a vida é o maior dom de Deus ao ser humano. No entanto, é considerada também como exílio, pois concebe a Eternidade como a pátria definitiva. Vive-se numa terra estrangeira. Atentando para o sentido religioso e existencial da oração, vale ressaltar a experiência do desterro. Embora a palavra designe expatriação, tal sentimento não é exclusivo dos que emigram, ainda que neles a experiência seja mais drástica e impactante. De alguma forma, a criatura humana conhece bem a sensação de estar deslocada, sem solo, isto é, desolada. Por isso, a oração também cita “os degredados filhos de Eva”. Degredo é sinônimo de desterro. Segundo a narração metafórica e mitológica do Livro do Gênesis, o homem rompe com o paraíso primordial, o Éden, onde havia plena harmonia com toda a criação e o seu Criador. Quebrada a unidade, o ser humano fica sem chão. Os filhos de Eva são desterrados, porque estão cindidos em suas relações e longe deles próprios. É como se na vida vagassem por caminhos em busca de sua origem. Deste modo, o homem fica desprovido de sua harmonia e, portanto, estrangeiro dentro de si mesmo.

De fato, muitas vezes, mergulhando em seu âmago, vislumbra-se aquilo que se poderia e gostaria de ter sido. Então, nota-se a limitação ou incapacidade de realizar tamanho projeto e alcançar a plenitude de suas potencialidades. Dessa incompatibilidade surge certa frustração, como se vivesse uma vida que não é a sua, habitando uma terra que não lhe pertence. Olhar para aquilo que se poderia ser e, ao mesmo tempo, dar-se conta de como se é, gera o sentimento de desolação. Quando se toma consciência de quem era o ser humano nos primórdios da criação, o que lhe estava reservado, sente-se saudade. Saudade, sim, da terra que era a sua e da qual está deportado. O monge Germanus Contractus usa imagens bíblicas do Antigo Testamento, aplicando-as à sua vida. Sentia-se como um desterrado. Sua doença lhe trazia tais sentimentos. Entende-se assim o sentido de sua súplica. 

A oração fala de nossas origens, de acordo com a doutrina cristã. No entanto, poder-se-ia considerar como uma metáfora da vida no Brasil atual. Vive-se exilado da pátria pela qual se lutou e sonhou. O brasileiro foi expatriado e deportado da terra da alegria, paz, solidariedade e esperança, do solo fértil da “mãe gentil”, que Deus lhe presenteou: a Terra de Santa Cruz. Hoje, fica-se ancorado noutro país, lugar de corrupção, violência, hipocrisia, mentiras, conveniências, contradições, desrespeito às pessoas e agressão a Deus. Não será isso um verdadeiro degredo e um vale de lágrimas? A Salve Rainha não é mera súplica do passado ou simples prece devocional, mas também profecia e oração para os dias de hoje! Caberiam bem as palavras do salmista: “Como entoaremos o cântico da alegria do Senhor em terra estrangeira?” (Sl 137/136, 4).

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