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A aventura do romance

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A aventura do romance

Estava arrumando meus livros na estante, quando encontrei este pequeno livro de Milan Kundera, intitulado A Cortina (156 páginas). São vários ensaio sobre a teoria do romance, mas muito leves, deliciosos, muito longe do jargão acadêmico. Vou destacar aqui algumas curiosidades. Por exemplo, ele fala de grandes romances da literatura mundial, grandes escritores, mas não fala em nenhum brasileiro. Ele comenta escritores tchecos e austríacos que poucos leitores já ouviram falar, nem mesmo foram traduzidos para o português.

Para ele, os grandes romances são Dom Quixote, Madame Bovary, Ulisses, Anna Karenina, Em Busca do Tempo Perdido, O Processo e O Homem Sem Qualidades. Claro que ele fala em muito mais obras, mas essas são sempre comentadas no decorrer do livro. Essa é a trajetória normal de qualquer escritor. Todos têm um roteiro de leitura e ninguém vai conseguir ler todos os livros importantes no decorrer de uma vida.

Muitos dos livros comentados, não cheguei nem perto de ler. Outros comecei a ler e desisti em seguida. Em deter minado momento ele diz: “A obra é quilo que o apresentará na hora do balanço final. Pois a vida é curta, a leitura é longa e a literatura está se suicidando por uma proliferação absurda”. Senti um calafrio ao ler isso, mas é a mais pura verdade.

Por exemplo, O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil tem umas duas mil páginas. É uma coisa profunda sobre alma humana, mas não conheço ninguém que foi até o final dessa leitura. O romance de Proust é bem maior, mas acho mais agradável de ler do que qualquer reunião de poemas. 

Cada leitor tem suas preferências de temas e estilo. Achei muito divertido ler Dom Quixote, de Cervantes, mas não fui até o fim de Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, dois romances fundadores, segundo Kundera. Tive a mesma dificuldade com Fausto, de Goethe, mas amei o Fausto, de Marlowe (que não são citados por Milan Kundera).

Tchecoslováquia

A grande paixão de Kundera é o seu país. E ele diz em A Cortina que a Tchecoslováquia não tem um grande romance para contar a tragédia da invasão de seu país por forças soviéticas nos anos 60. Ele está sendo modesto, porque este romance existe sim e é dele mesmo: A Insustentável Leveza do Ser. Neste livro, ele conta como um país pode ser assassinado por outro muito maior e mais poderoso, perdendo quase que por completo sua língua nativa.

Cinema  A Insustentável Leveza do Ser foi levado ao cinema pelo diretor Philip Kaufman, em 1988, com Lena Olin, Juliette Binoche e Daniel Day-Lewis no elenco. Conta a história de um médico que tem sal vida destruída por ter publicado um artigo contra a invasão da Tchecoslováquia.

Temática

Outro dia encontrei num sebo o livro A Brincadeira, de Milan Kundera. Nele, o escritor narra a estória de um estudante que tem a vida destruída por causa de uma brincadeira dita em carta para sua namorada. A carta chega ao conhecimento do partido e ele é obrigado a entrar para o serviço militar em uma unidade de traidores. O interessante nos livros de Kundera é que ele toca num dos assuntos mais delicados da vida moderna: a interferência da política partidária (em um regime autoritário) nas vida das pessoas comuns. Olhando esse Brasil enlouquecido das redes sociais, não recomendo essas leituras.

Burrice 
Por falar nisso, peguei essa frase no livro A Cortina: “A razão é capaz de desmascarar o mal que se esconde perfidamente atrás da bela mentira. Mas diante da burrice a razão é impotente. Não há nada a desmascarar. A burrice não usa máscara. Está lá, inocente. Sincera. Nua. E indefinível”. Ele está se referindo a uma burrice orgulhosa que estamos conhecendo muito bem atualmente em nosso país. Escritores vêem coisas que o senso comum não enxerga nunca.

Juventude 
Lá adiante, Kundera resgata uma frase do filósofo romeno Emil Cioran, que na juventude havia sido um fascista fervoroso: “A infelicidade é um feito dos jovens. São eles que promovem as doutrinas da intolerância e as colocam em prática; são eles que precisam de sangue, de gritos, de tumulto, de barbárie. Na época em que eu era jovem, toda a Europa acreditava na juventude, toda a Europa a empurrava para a política, para os problemas de Estado”. Curiosamente, aqui no Brasil atual, os jovens foram e são instrumentalizados e usados para tais fins. Nada de novo sob o sol.

Burocracia 
Milan Kundera não deixaria de colocar em primeiro plano seu ilustre conterrâneo, o escritor Franz Kafka, o homem que antecipou o inferno burocrático da era em que vivemos. Mas, segundo ele, Kafka só assumiu a nacionalidade tcheca já no fim da vida. Durante toda a sua vida, escreveu em alemão e graças a isso é conhecido no mundo todo, comemora Kundera. Se tivesse escrito em tcheco jamais saberíamos de sua existência, diz ele. Isso soa bastante familiar para escritores em língua portuguesa, que conhecem este isolamento. Por sinal, durante todo o livro Kundera não cita Fernando Pessoa nem José Saramago. Ah, mas o texto era sobre o romance. Sim, mas ele cita Rimbaud e Baudelaire como grandes expoentes da poesia mundial.

Brasil 
Nosso país tem grandes nomes como João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Clarice Lispector que poderiam figurar muito bem nesses artigos de Milan Kundera, se ele fosse um leitor de romances em língua portuguesa. Infelizmente, acho que ele não é. O romance ainda é uma das formas mais interessantes de entrarmos em contato com uma cultura e seus dramas humanos. Basta seguir os mestres.

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