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A biblioteca perdida

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Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

Há coisa de vinte dias, partindo em férias para um périplo pela Alemanha e Suíça, falaram-me muito bem de St. Gallen (“São Galo”, em bom português), cidade de médio porte, com cerca de 70 mil habitantes, capital de cantão homônimo (isto é, de uma espécie de estado da Confederação Helvética), localizada na chamada “Suíça Oriental”.

Falaram-me da cidade em si, da sua origem que retroage aos anos 600, quando ali estabeleceu o monge irlandês Galo (550-646), mais tarde santo, sua ermida. Falaram-me da Universidade local, da Casa do Peso (uma tal “Waaghaus”), da bela Praça do Mercado (a “Markplatz”) e por aí vai.

Mas me falaram, principalmente e muitíssimo bem, da célebre Abadia de St. Gallen, fundada em 747, beneditina, com a sua Catedral (já que hoje não é mais um monastério, mas, sim, a sede de um bispado) e a sua biblioteca (a “Stiftsbibliothek”), que, pela UNESCO, foi merecidamente chancelada como Patrimônio da Humanidade. De minha parte, fiquei doido para visitar a tal “Stiftsbibliothek”. Afinal, como lembram  Guillaume de Laubier e Jacques Bosser, autores de “Bibliothèeques du monde” (Éditions de La Martinière, 2014), “a história das grandes bibliotecas conventuais é também a história da cultura europeia”. 

Antes mesmo de partir, claro, procurei me informar sobre a tal Abadia, a Biblioteca e tudo mais. Soube que a coleção de livros no local inicia-se ainda no século VIII, sob a supervisão de um tal abade Waldo (740-814). Uma biblioteca ali existe desde o século IX, pelo menos. E desde 820-830, é célebre “Plan de Saint-Gall”, uma espécie de projeto de cidade religiosa ideal que, embora jamais executado em sua totalidade onde quer que seja, exerceu grande influência sobre as construções beneditinas da Idade Média.

Soube, precisamente pelos autores de “A biblioteca: uma história mundial” (Edições Sesc, 2016, e cujo título original é “The Library: a World History”), James W. P. Campbell (texto) e Will Pryce (fotografias), que “a planta de St. Gallen, desenhada em 820-30, é a mais antiga planta de um monastério que existe”. Está preservada na própria biblioteca da Abadia. “Historiadores já discutiram longamente se representa um monastério real, mas o consenso geral é de que se trata da planta de um monastério ideal”, afirmam ainda os citados autores. Na tal planta, claro, há uma biblioteca. E ela (a planta) “provavelmente inspirou as estranhas localização e forma da biblioteca de O nome da rosa” (1980). Não deixa de ser uma especulação (ou mesmo fofoca) interessante, muito embora a biblioteca da planta de St. Gallen seja bem menor que a biblioteca imaginada por Umberto Eco (1932-2016), que, segundo também especulam os estudiosos da obra do grande escritor italiano, pode ter contido cerca de 85 mil volumes. E não podia ser diferente no mundo real: as abadias medievais, sobretudo pelo custo que eles representavam à época, não tinham tantos livros assim.

Em “Bibliothèeques du monde” li ainda que, já importante centro produtor de livros, em torno do ano 850 a Biblioteca de St. Gallen “é objeto de um primeiro catálogo que já mostra que os interesses dos monges iam bem além das temáticas teológicas. Mais de 400 dos manuscritos citados nesse catálogo chegaram até os nossos dias”. Ela teve, por aquela época, o seu apogeu; e talvez tenha sido a mais famosa de todas as bibliotecas medievais.   

St. Gallen, claro, também conheceu dias sombrios, a começar pela invasão dos Hunos em torno de 930. Ele também sofreu bastante, no começo do século XVI, nas mãos dos reformistas calvinistas. E o monastério e a igreja românica originais não existem mais, à exceção da cripta onde descansam os restos mortais dos antigos abades. 

Na verdade, segundo me informaram os autores de “Bibliothèeques du monde”, é em torno de 1750 que “o abade Célistin II Gugger von Staudach lança os trabalhos de reconstrução da Abadia em direção ao que conhecemos hoje. Ele os confia ao arquiteto austríaco Peter Thumb (1681-1766) e a seu filho Michael Peter (1725-1769), adeptos de um estilo barroco simples e vigoroso, sem qualquer afetação”. E, nesses planos, claro, a Biblioteca terá um papel de destaque. Finalmente, entre 1755 e 1765, a Abadia é reconstruída no belíssimo estilo barroco que podemos apreciar hoje.

No que toca à Biblioteca, como registram os autores de “A biblioteca: uma história mundial”, ela “tem muitas formas de decoração [já mais próximas do rococó que do barroco], incluindo putti (meninos nus representados frequentemente com asas) em nichos acima das estantes, simbolizando as disciplinas mecânicas e as belas-artes. (…). A ala da biblioteca foi adicionada pelo arquiteto Peter Thumb entre 1758 e 1760. A decoração ficou pronta entre 1762 e 1763. A biblioteca está no segundo andar e tem 9,95m de largura, 28,4 de comprimento e 7,3 de altura. A baia final contém a escada de acesso à galeria. A porta do nível superior leva à sala dos manuscritos. Os [belíssimos] afrescos do teto [separados por trabalhos em gesso] foram feitos por Josef Wannenmacher [1722-1780], fornecendo um guia para os aspectos acadêmicos, pastorais e pedagógicos da vida monástica”. As estantes trabalhadas em madeira e as colunas mármore, mais escuras do que claras, são também belíssimas; o raro chão de madeira, com fina obra de marchetaria, idem.

Hoje, também segundo fui informado, o acervo de St. Gallen, funcionando como biblioteca de pesquisa e coleção histórica, conta com mais de 150 mil obras, entre elas mais de 2 mil manuscritos e 1500 incunábulos. Nesse meio, além dos manuscritos citados no seu primeiro catálogo (boa parte deles irlandeses, do século VIII), estão outros tesouros, como uma “Vie de Charlemagne” escrita logo após a morte do grande imperador, o “Evangelium Longum” (finamente coberto de marfim por obra de um dos monges da Abadia), a “Mirabilia Romana” (o primeiro guia turístico de Roma, escrito em pergaminho) e até um sombrio manuscrito que relata os atos de crueldade do verdadeiro conde Drácula (Vlad III, o Empalador, 1431-1476).

Para vocês terem uma ideia de como eu estava empolgado com St. Gallen, cheguei até a comprar um livrão em alemão sobre a temática (das bibliotecas): “Die Weisheit baut sich ein Haus: Architektur und Geschichte von Bibliotheken” (Editora Prestel, 2011), organizado por Winfried Nerdinger. Péssimo negócio. Escrito na língua de Schiller (1759-1805) e Goethe (1749-1832), até hoje peno para entender algo mais que as fotografias.

Bom, eu me programei, como vocês podem ver, para a tão desejada visita. Dormimos na noite anterior em Füssen, no extremo sul da Baviera alemã. E seria fácil, portanto, dando uma volta no lago de Constança (também chamado “Bodensee”), via Áustria, chegar no começo da tarde a St. Gallen. Tudo ali é muito perto. 

Mas havia algumas pedras no meio do caminho. Primeiro, uma subida ao castelo de Neuschwanstein (pensem numa pedra “enorme”). Depois uma parada estratégica no Principado de Liechtenstein. Por fim, e mais grave, minutos preciosos perdidos no comércio da “Markplatz” de St. Gallen e arredores.

Chegamos a tempo de contemplar o entardecer no complexo da Abadia de St. Gallen. Muito mais do que belo. Mas do interior da Biblioteca, por minutos perdidos, nada. Já fechada. Ainda bati às pressas na porta. Pensei em gritar que escrevia para a Tribuna do Norte, mas achei que seria em vão. E tudo que sei sobre a Biblioteca de St. Gallen, meus amigos, foi por delação. Me desculpem. 

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