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A cidadela

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Cláudio Emerenciano 
Professor da UFRN
A convulsão do mundo desafia os sentimentos e tenta erodir os fundamentos da civilização. A planetização de violência assustadora, inquietante e devastadora pela internet realimenta conflitos existenciais. A fúria, que culminou com a invasão do Capitólio, sede do Congresso dos Estados Unidos, patenteou a potencialidade letal de um louco como Donald Trump. Usou a internet para desagregar e infundir ódio. Nessa conjuntura a televisão não questiona seu próprio papel e sua influência. Configura-se uma corrida desenfreada por notícia de qualquer natureza, movida exclusivamente por sensacionalismo, sem submissão a valores éticos e morais. Parece não haver limites. Ignoram Carlos Pena Filho em um dos seus poemas sobre Recife: “Hoje, serena flutua/ Metade roubada ao mar/ Metade à imaginação/ Pois é do sonho dos homens/ Que uma cidade se inventa”. Cidade litorânea, como a ilha de Ítaca, paraíso inexorável de Ulisses na “Odisseia”. Onde se vive, em qualquer lugar do mundo, no litoral ou no interior, o desafio do homem foi sintetizado por Albert Camus: “Não é nenhuma vergonha ser-se feliz, vergonhoso é ser feliz sozinho”. Em algum aspecto, o romance “As cidades e as serras” foi autobiográfico e premonitório. Faltou Eça de Queiroz assumir o personagem como Gustave Flaubert o fez: “Madame Bovary sou eu”. A opção do grande Eça era finalmente viver e morrer nos campos de Portugal. Mas faleceu em Paris no auge da “Belle Époque”. Jacinto de Tormes é Eça de Queiros, da mesma maneira que Larry Darnell é Somerset Maugham em “O fio da Navalha”. Enquanto Machado de Assis se revelou em “Memórias póstumas de Brás Cubas”, em “Quincas Borba” e no “Memorial de Aires”. Vínculos entre a ficção e a realidade.    
Não importa a dimensão físico-geográfica. O conteúdo da cidade não se externa por sua configuração, seu tamanho e sua população. Pois o que mais alcança e domina o tempo, sobrepujando-o, são as relações humanas, os sentimentos, os sonhos, o espírito coletivo, os encantamentos, a cultura e a maneira de viver: define- lhes sua personalidade e sua identidade. Nesse sentido a felicidade de cada homem não pode ser individual, exclusiva, indiferente e alheia às circunstâncias dos outros, que com ele fazem e substanciam uma coletividade. Perspectiva em que não há distinção entre uma aldeia ou um pequeno ajuntamento, povoado pequeno, humilde, rústico e esquecido; uma caravana de nômades num deserto ou uma cidade e, ainda, uma grande metrópole; uma comunidade campestre, cercada de pomares verdejantes, cortada por rios e envolvida por múltiplas e idílicas manifestações da natureza; ou uma pobre vila em plena caatinga, resistindo, heroica e estoicamente, em terra esturricada.
Antoine de Saint-Exupéry, em livro de profunda densidade filosófica, revelador das latitudes da condição humana, inacabado (“A cidadela”), considerado seu “canto de cisne”, ressaltou o peso da solidariedade, da partilha, da paz individual e coletiva, e, essencialmente, da convergência espiritual e material de uns com os outros: “É por isso que convém manter permanentemente acordado no homem aquilo que é grande, objetivando convertê-lo à sua própria grandeza”. A “cidadela” é a denominação universal, atemporal, espiritual, mística e mítica da cidade que habita na alma de todos os homens. Nela a humanidade se sublima. Os sentimentos, como os laços, perpetuam-se ao alicerçar a real dimensão da vida e da condição humana. Projeta-a na imensidão sem fim. Exorciza o que é iníquo, mesquinho, indigno e desumano, sedimentando- lhe magnitude. Esse espírito, que é, ao mesmo tempo, individual e coletivo, nunca será vencido por surtos de estupidez que, periodicamente, ceifam violência e insegurança.   
Haverá sempre duas cidades. Elas não se distinguem entre a utopia e a realidade, os sonhos e os pesadelos, a alegria e a tristeza, o passado e o presente. Uma é caminhada, ascensão, percurso individual e coletivo do homem para Deus. Conjugam-se os meios e os fins da existência humana. Renova-se a cada instante o sentido da vida. A outra é a antítese da “cidade” amada e sonhada por Sócrates (Atenas), que preferiu morrer a abandoná-la indefinidamente. Viver fora e longe dela seria abdicar a identidade com um modo de viver e uma cultura, fontes insubstituíveis e transcendentais. Dos jardins de Getsêmani Jesus contemplou Jerusalém, chorou e suou sangue. Antes, deplorara- lhe a perda de humanidade: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados!”. Mas Santo Agostinho amalgamou a Jerusalém terrestre à celestial. Uma, a exemplo da “escada de Jacó”, é caminho, via de acesso à outra: a “Cidade dos Homens” e a “Cidade de Deus”.  Esse é um enigma para os homens: redescobrir na cidade, no lugar de permanência, o sentido da vida. Identificar a inserção individual no ser coletivo, onde cada um é responsável por todos. Porque as fontes da cultura e da civilização são os homens.
Ernest Hemingway contemplava a Paris de todos os tempos ao amanhecer, sentando-se na escadaria da Basílica de “Sacré-Coeur”. Prosper Mérimée, criador de “Carmem” (eternizada na ópera de Georges Bizet) em “A Vênus de Ille”; chamou uma aldeia dos Pirineus Orientais de sua “cidade sentimental, eterna e imutável”. Quantos e quantos poetas e cronistas decantaram e, ainda hoje, exaltam a alma do Rio de Janeiro? Emblemático atributo de Vinicius de Moraes. Todos ignoram-lhe a insegurança e os antagonismos, visualizando apenas o que é belo, humano, sentimental e superior ao tempo. Gilberto Freyre, do casarão em Apipucos, comovia-se ao descortinar Recife e Olinda, misturando história, sentimentos e cultura. Câmara Cascudo viu em Natal tudo, a província e o mundo, o homem de todos os tempos, amando e se misturando com a natureza: ode à vida. Sonho e realidade sempre…     
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