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A crise e os sonhos

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Cláudio
Emerenciano

Professor da UFRN

Os povos e as civilizações se aprimoram, essencialmente, em decorrência de fenômenos como a interação e a comunicação sociais. O homem somente partilha e desfruta laços coletivos, renova sentimentos e identifica o verdadeiro sentido da felicidade, desde que conheça a si mesmo. Não há alma coletiva sem os sonhos, as fantasias, as utopias e o querer de cada um.  Esse é um dos fundamentos da filosofia socrática (de Sócrates, séc. VI a.C.) e um dos alicerces da cultura ocidental. O silêncio e a solidão não são fins, mas caminhos, fontes e meios através dos quais o homem se interioriza. A reflexão é a busca de todas as buscas. O discernimento é meio de aprimoramento dos atributos inerentes ao gênero humano. Livre de todo e qualquer constrangimento ou limite. Assim, do individual para o coletivo, a humanidade ascende em termos espirituais, éticos e morais. A consciência da dignidade é solitária.
Silenciosa. Sua preservação, entretanto, é fruto da cultura de todos os homens. Opção de vida social e valor inesgotável de uma civilização. Eis uma elegia da condição humana.
As alegrias coletivas exibem a alma de uma nação, suas características, seus sonhos, sua maneira de ser, agir, pensar e querer. Mas a fantasia reside no âmago de cada pessoa, em seu coração (sentimentos) e em sua consciência (racionalidade). Expressa a potencialidade do homem para vivenciar o que se convencionou chamar de fuga do real. Não é alucinação. Tampouco alteração psicológica de natureza individual ou coletiva.  Povos e culturas, em todos os tempos, concebem fantasias e formas de vivê-las. Nelas predominam aspectos aventurescos e românticos da vida. Há sempre o herói e reptos às suas crenças. Antíteses da maldade e da injustiça. Como em “Rolando e os doze pares da França, “Ivanhoé” e “Dom Quixote. Suas ações definem e enfeixam romantismo diante do mundo e da vida. Principalmente ao proclamar o amor.  Nesse sentido, o livro “As mil e uma noites” é a mais fantástica, rica e fértil irrupção de aliciantes fantasias concebidas, até hoje, pelo gênero humano. Outras, como “A Ilíada” e “A Odisseia” de Homero, as fábulas de Esopo, o Cântico dos Cânticos, atribuído a Salomão, a “Eneida” de Virgílio, devassaram os tempos. Ainda hoje inebriam, comovem, fascinam e inspiram gerações.
Transmitiram-se originalmente pela comunicação oral, num processo genuíno e enigmático de memorização. Depois a escrita, desde a mais rudimentar, empregando símbolos, sinais e hieróglifos, até o advento do alfabeto. Por fim, a literatura, em todos os tempos, revela a marcha incessante do homem em busca do sentido da vida. Em todas as circunstâncias.
São essas as fontes que impregnaram civilizações de fantasias. Realimentaram e renovam, inesgotavelmente, a imaginação, os sentimentos, os devaneios, a ficção, a poesia, os encantamentos, as alegrias e as tristezas, a pintura e a escultura, a música e a dança. Em todo o fluir dos tempos. Até certas festividades, ainda perpetuadas no universo da cultura popular, refletem esse processo de transferência da cultura. Ralph Linton, o grande antropólogo norte-americano – uma das grandes admirações do mestre Cascudo – dizia que “donos do poder” jamais conseguiriam banir, eliminar, conter e sufocar o ritmo e a força desse liame entre gerações. Sua destruição implicaria no fim do mundo civilizado. Seria, preconizaram George Orwell em “1984” e, antes dele, Aldous Huxley, no “Admirável mundo novo” (1932), a ruína dos valores, dos sonhos, das motivações, do imaginário, do destemor e das dúvidas da condição humana. Deixando de amar, pensar, questionar, sonhar, criar e perscrutar, o homem abdicaria de si mesmo e da percepção do sentido da vida.
Por isso os autoritarismos temem o sonhar, o questionar e o aspirar das pessoas. As nefastas experiências  dos totalitarismos não conseguiram, até hoje, eliminar ou sofrear o livre pensamento, apesar dos tentáculos dos seus aparelhos de repressão. “Arquipélago Gulag”, de Alexander Soljenitsyn, Nobel da literatura, foi, a mais contundente e pormenorizada obra sobre os campos de prisioneiros políticos à época do stalinismo. Os campos de concentração do nazismo, com seus fornos e “clínicas experimentais”, foram responsáveis pelo genocídio  de seis milhões de judeus, sem falar nas vítimas de outras nacionalidades.     
Está em curso uma crise universal, planetária, de magnitude imprevisível e inimaginável. Mas o que importa é o homem comum. Cada um com seus pensamentos, inquietudes, assombros, dúvidas, ansiedades e insegurança. Diferentemente de maus e medíocres políticos, que predominantemente regem o mundo, esse homem pensa nas futuras gerações. Transfere para seus filhos e netos a dádiva dos seus sonhos. Acolhem temores ao vislumbrar, ou não, as perspectivas do futuro, menos no conteúdo tecnológico, e muito mais em substância de humanidade. Gandhi, que não era cristão, certa vez aludiu ao “mito de Nazaré”. Referiu-se à imagem ideal da Família Sagrada para os cristãos. Exemplar para a humanidade. Segundo ele, os cristãos não podiam jamais perder a consciência do sentido de perpetuação no tempo e na eternidade. As relações que, numa família, pelo amor, na interação de uns com os outros, pela supressão de egoísmos e vaidades, cada um assume o sentido do seu viver. A prioridade é o que ele ama: pessoas, paz, costumes, laços, afeições.
Também belezas naturais, músicas, cantos, o cheiro da terra molhada pela chuva, a mansidão do mar, os lírios dos campos, os canaviais, os girassóis, as flores, as aves dos céus, tudo o que é susceptível de misturar sonho e realidade, sentimento e razão. É sua vida…       
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