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A democracia ultrajada

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Tomislav R. Femenick*
Historiador, membro da diretoria do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Várias foram as causas que deram origem ao golpe militar de 1964. Em primeiro lugar, no Brasil de então o conceito de democracia era muito propalado e pouco praticado por todas as correntes políticas. No meio militar ainda pontificavam as lideranças do movimento tenentista nascido nos anos 1920, quando oficiais de patentes inferiores lutaram pela derrubada do governo; alguns integrantes do governo Goulart propunham o fechamento do Congresso Nacional; as esquerdas sonhavam com a ditadura do proletariado; em várias ocasiões líderes dos grandes partidos (UND, PSD e até do PTB) se posicionaram pela derrubada de governos eleitos constitucionalmente. Talvez a exceção tenha sido Juscelino Kubitschek.
Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco (D) assumiu o comando do país, após a deposição do presidente João Goulart
O começo da crise que gerou o golpe militar deu-se no dia 25 de agosto de 1961, quando o presidente Jânio Quadros enviou mais um dos seus bilhetes. Dessa vez ao Parlamento Brasileiro, muito embora que em forma de ofício: “Ao Congresso Nacional. Neste dia, e por esse instrumento, deixando com o Ministro da Justiça as razões do meu ato, renuncio ao mandato de Presidente da República. A) J. Quadros. Brasília, 25.08.61”.

De pronto, o Congresso aceitou a renúncia. Como o vice-presidente João Goulart estava na China, presidindo uma comitiva que estava em visita oficial àquele país, a Presidência da Republica foi ocupada, provisoriamente, pelo presidente do Congresso, o deputado federal Ranieri Mazzili.

#SAIBAMAIS#Havia entre os militares um movimento contrário ao vice-presidente João Goulart e, consequentemente, contra a sua investidura no posto máximo de comando da nação. Esse movimento tinha livre trânsito nos ministérios da Guerra, Marinha e Aeronáutica. Por isso queriam que o Congresso decretasse um impeachment para Jango. Outros militares, estes legalistas, defendia a posse do vice-presidente no cargo de Presidente da República tão logo regressasse ao país – até participaram da chamada “cadeia da legalidade”. O marechal Henrique Teixeira Lott (ex-ministro da Guerra, no governo de Juscelino) se declarou ao lado de Jango e foi preso, fato que levou outros militares a se posicionarem também pela sucessão prevista na Constituição.

Esse ambiente de pré-conflagração foi confirmado pelo presidente provisório, deputado Ranieri Mazzilli, em mensagem dirigida ao presidente do Senado, senador Auro de Moura Andrade, três dias após a renúncia de Jânio: “na apreciação da atual situação política, criada pela renúncia do presidente Jânio Quadros, os ministros militares, na qualidade de chefes das Forças Armadas, responsáveis pela ordem interna, manifestaram a absoluta inconveniência, de motivo de segurança nacional, do regresso ao país, do vice-presidente da República João Belchior Marques Goulart”.

O Brasil parlamentarista
Pressionado pelos acontecimentos e pela possibilidade de uma guerra civil, o Congresso aprovou uma emenda constitucional, instituindo o parlamentarismo no Brasil, regime que reduz em muito o poder do Presidente da República. A Constituição foi emendada e, no dia 7 de setembro de 1961, João Goulart assumiu o posto de Presidente constitucional do Brasil, com mandato previsto para até 31 de janeiro de 1966. Seu Primeiro Ministro era Tancredo Neves.

A emenda constitucional do parlamentarismo continha, também, a determinação para que fosse realizado um plebiscito, mesmo depois de alterado o regime, oportunidade em que os eleitores deveriam opinar sobre suas preferências com relação à forma de governo para o país; se presidencialista, o sistema anterior, ou parlamentarista, o sistema vigente. O plebiscito foi realizado em janeiro de 1963, ocasião em que o povo escolheu a volta do presidencialismo – quase nove milhões e meios de votos para o presidencialismo, contra menos de dois milhões e 100 mil para o parlamentarismo. Jango, então, obtém plenos poderes, aqueles que lhe foram dados pelo povo, na eleição e no plebiscito.

O Brasil volta à crise
Se antes de assumir a presidência João Goulart já imprimia medo nos meios conservadores, principalmente entre os militares e parte do empresariado, a sua atuação como Presidente – tanto no sistema Parlamentarista como Presidencialista – agravou esse medo. Suas promessas de reforma agrária, fiscal, política e universitária iam muito além do que a elite do país poderia suportar. Mesmo que sua intenção fosse tão somente modernizar as estruturas políticas e socioeconômicas do país, como meio de vencer o subdesenvolvimento e os problemas da inflação e pobreza. Sua aproximação com alguns movimentos de esquerda desgastou mais ainda sua imagem junto aos conservadores de centro e de direita, que o atacaram denominando-o de subversivo.

As divergências entre Brizola e Jango eram exemplos da queda de braço que o presidente mantinha com a ala mais radial da esquerda, que acusavam seu governo de fazer composição com setores conservadores e imperialistas. As negociações para a estatização das instalações da American and Foreign Power Co. (AMFORP) – uma empresa controlada pela Eletric Bond and Share – por US$ 135 milhões, acirraram as divergências, pois essa esquerda considerava que o valor negociado era exorbitante.

O Rio Grande do Norte também foi palco de batalha entre as forças ditas desenvolvimentistas e nacionalistas, travadas durante o governo de João Goulart. Quando candidato a governador, Aluízio Alves, líder udenista que terminou se elegendo pelo rival PSD, apresentou uma proposta de desenvolvimento econômico para o Estado; essas foram consideradas inexequíveis, pois faltavam recursos.

Aluízio foi busca-los no programa Aliança para o Progresso, um plano de ajuda econômica e social do governo dos Estados Unidos para a América Latina, com investimentos de 20 bilhões de dólares, oriundos de diversas organizações internacionais, inclusive alguns países europeus e empresas privadas. Moniz Bandeira (1999) afirma que o programa norte-americano defendia “a reforma tributária, a reforma agrária e a estabilização dos preços dos principais produtos de exportação, ao mesmo tempo em que visava estimular as empresas privadas dos Estados Unidos a investirem mais nos países da América Latina e a mergulharem em suas economias, associadas aos capitais nacionais. O corolário político do programa de Kennedy seria, por conseguinte, o ‘apoio inequívoco à democracia’, principalmente à ‘democracia progressista’ ou esquerda democrática”.

A Aliança para o Progresso talvez tenha sido o projeto mais arrojado da política externa dos Estados Unidos, depois do Plano Marshall, seu principal instrumento para a reconstrução da Europa Ocidental, nos anos seguintes que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, quando cerca de US$ 13 bilhões foram gastos como assistência técnica e econômica — valor que hoje equivaleria a algo em torno de US$ 130 bilhões.

O Rio Grande do Norte foi grandemente beneficiado pelos recursos da Aliança. O Estado recebeu recursos financeiros e equipamentos que foram direcionados ao ensino públicos, ao abastecimento de água e aos serviços de eletricidade e telefonia. Entretanto, as correntes da esquerda mais radical ficaram contra a entrada desses recursos para o Estado e fizeram estardalhaço. No dia 5 de maio de 1963, enquanto o governador Aluízio Alves oferecia um banquete ao embaixador norte-americano Lincoln Gordon, que contava com a presença do General Antonio Carlos Muricy, comandante da 7ª Divisão de Infantaria, sediada em Natal, o deputado federal Leonel Brizola atacou frontalmente a ambos, em um comício organizado pela Frente Nacionalista do Rio Grande do Norte, tendo à frente o prefeito Djalma Maranhão.

Segundo Hélio Silva (1975), Brizola atacou o General Muricy nos seguintes termos: “Acusou-o de gorila e golpista […]. Faz apelos para que os soldados do Exército, Marinha e Aeronáutica pegassem em armas, em defesa das reformas de base. Declarou ser necessário ‘colocar mais fogo na fogueira e aumentar a pressão contra o Congresso para conseguir a aprovação das reformas indispensáveis à vida brasileira’ […]. E Brizola disse mais que apresentaria ao presidente da República uma ‘representação contra o Embaixador Gordon’, considerando-o persona non grata ao governo brasileiro, pois agia em nosso País, com ‘autentico inspetor de colônia’. Também atacou a Aliança para o Progresso e concitou o povo a expulsar do País os ‘agentes do imperialismo ianque’ […]. Na manhã seguinte, às 11 horas, o Comandante da Guarnição Militar recebeu uma manifestação de desagravo por parte de todos os oficiais das três armas sediadas em Natal. Compareceram também sargentos, suboficiais e entidades civis […]. O episódio de Natal, entretanto, serviu como um teste. A oficialidade brasileira podia ser unida”.

Esse clima de confronto ideológico, as greves meramente políticas que paralisavam o transporte urbano e interurbano, os bancos, o comércio, a indústria, bem como as greves estudantis, criaram um cenário de falta de poder. Em julho e setembro de 1962 tinham acontecido duas greves gerais, com saques às lojas e morte de quase 50 pessoas, além de ferimentos em cerca de 500. A partir daí a oposição passou a considerar os movimentos paredistas como instrumento de pressão usado pelo governo.

A Ditadura senta praça
As forças de ração a Goulart também estavam se mobilizando, só que em duas frentes: uma civil e outra militar. Seis dias depois do comício do Rio, houve em São Paulo a “Marcha com Deus pela Liberdade”, organizada por setores da igreja católica, pelo governo do Estado, Sociedade Rural Brasileira, União Cívica Feminina e por quase todas as forças contrárias à política do governo federal. Como que abstraído ou desinformado do que se passava em seu entorno, no dia 30 de março o presidente comparece àquela Assembleia de suboficiais e sargentos do Estado da Guanabara, onde faz um discurso de improviso acusando a oposição, se defendendo dos supostos propósitos ilegais e se dizendo preparado para enfrentar qualquer quebra da ordem constitucional. Naquele mesmo instante, os militares se preparavam para o golpe.

A radicalização das posições de esquerda e de direita no início de 1964 terminou por provocar a arregimentação de tropas militares. Primeiro em Minas Gerais, no dia 31 de março, sob o comando do general Olímpio Mourão Filho, que teria se antecipado a um melhor momento, pois se aposentaria no dia 9 de maio seguinte. Não houve resistência. Pelo contrário, vários comandos militares regionais aderiram à sublevação. No dia 1º de abril, a facção das Forças Armadas contrária à tendência esquerdizante do governo de Jango tomou o poder. O presidente foi para Brasília para tentar organizar as forças que o apoiavam, porém não encontrou apoio para reagir ao golpe. Foi para o Rio Grande do Sul e, depois, pediu asilo político ao Uruguai. Era o fim de uma era e o princípio de outra; o período dos presidentes militares, de início veladamente autoritário, depois declaradamente ditatorial e antidemocrático.

  A Presidência da República foi declarada vaga e Ranieri Mazzilli mais uma vez assumiu o cargo em caráter interino, enquanto o autointitulado Comando Supremo da Revolução estruturava o novo governo. No dia 2 de março, os Estados Unidos reconheceram o “governo revolucionário”. A junta militar editou um Ato Institucional no dia 9 de abril que dava ao governo militar o poder de alterar a Constituição, cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos por até dez anos, demitir funcionários públicos e de empresas controladas pelo governo, colocar em disponibilidade ou aposentar compulsoriamente qualquer pessoa que tivesse atentado contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade da administração pública. Determinava, ainda, eleições indiretas para a presidência da República. Sua vigência expiraria no dia 31 de janeiro de 1966.

O presidente, escolhido pelos militares e eleito em apenas dois dias, foi o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Foi eleito no dia 11 e tomou posse no dia 15 de abril. Uma das suas primeiras medidas, sob o eufemismo do “saneamento político”, foi a cassação dos direitos políticos de 378 pessoas, entre os quais três ex-presidentes da República (Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart), seis governadores e 55 integrantes do Congresso Nacional. Por conta de um “saneamento moral e administrativo”, dez mil funcionários públicos foram demitidos e abertos processos de investigação contra cerca de quarenta mil outras pessoas. A democracia foi retirada de cena e subiram ao palco os anos de chumbo, uma mancha negra na história do país. Cerceamento da liberdade, prisões, torturas e assassinatos, nos porões do governo. Sequestros, assaltos, guerrilhas inconsequentes e também mortes, nas resistências extremadas à ditadura. Todos nós perdemos, pois ninguém ganhou.

(*) Por causa de suas matérias publicadas na imprensa regional e nacional, Tomislav R. Femenick foi chamado várias vezes ao comando da 4º Exército, no Recife, para “prestar esclarecimentos”. Pelo mesmo motivo, perdeu o registro de jornalista, na Delegacia Regional do Trabalho de Natal. Coagido no desempenho de suas funções do Banco do Nordeste, onde era funcionário concursado e com estabilidade (mais de dez anos e não optante pelo FGTS), foi levado a pedir demissão.

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