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“A escola é a solução para a violência”

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Por Márcia Cezimbra

No Brasil do século XXI, onde 20 milhões de crianças e adolescentes vivem abaixo da linha de pobreza e a principal causa de morte de meninos em São Paulo é homicídio, o psicanalista gaúcho José Outeiral afirma que a barbárie já se instalou no país e as estatísticas comprovam sua vitória sobre a civilização. Em seu novo livro “Ensaios sobre a maldade”, que a Unisinos lança em dois meses, Outeiral ainda vê esperanças para esta realidade trágica: ela está na escola, espaço em que  crianças e jovens cujas famílias enfrentam dificuldades emocionais ou materiais, têm uma segunda — e última — chance de encontrar um ambiente favorável a um desenvolvimento saudável, onde se possa construir valores e ética. Do contrário, farão parte das estatísticas de morte por violência. “A  violência é também contra a capacidade desses jovens de existirem como sujeitos psíquicos. A escola é  a saída para desenvolverem a capacidade de pensar,  de sonhar e buscar modelos saudáveis”.

Quais são as questões que você discute nestes ensaios sobre a maldade?
José Outeiral:  A primeira questão está na banalização da violência. O que a filósofa alemã Hannah Arendt diz é que a violência age de tal forma no ser humano que não deixa registro simbólico, não sustenta a memória. Fica um registro quase sensorial, uma angústia difusa. Tanto que a palavra genocídio só surge na Segunda Guerra. Antes, os turcos aniquilaram os armênios e praticamente não restou memória dessa barbárie. O avanço da tecnologia de guerra surge em paralelo com a destruição traumática da memória. É por isso que o Museu do Holocausto é necessário, para que torne isso vivo, para que não se esqueça. Algo semelhante ocorre com  jovens brasileiros que vivem só violência e barbárie. Viver é não-viver, não existir e não pensar. São o que os psicanalistas chamam de novos Hamlets, onde o que existe é a patologia do não-ser, não existir como pessoa, como sujeito psíquico e sem visibilidade social. Para esses Hamlets a vida vale muito pouco.

Por isso tanto faz viver ou morrer?
Outeiral:  No filme “Falcão — Meninos do tráfico”, de MV Bill e Celso Athayde, um menino de 10 anos justifica isso e diz: ‘Se eu morrer aos 10 anos, eu descanso’. Para quem vive na não-existência, a morte é um descanso, um passaporte para, quem sabe, um mundo melhor. Não há um sonho, um desejo, uma utopia e o que existe é a exclusão social como pessoa. A violência apaga o sentido de existir no mundo. Matar alguém é apenas um gesto. Penso que muitos desses jovens não desenvolveram pelo outro um sentimento de culpa, que existe quando há uma criação suficientemente boa. O que existe é a droga. A morte, como  acontece com alguns serial killers, é a afirmação da vida deles. Quando eles matam alguém, eles magicamente sobrevivem à morte, transformam, como escreveu Freud, o passivo em ativo: mato, não serei o morto. Eles é que causam a morte.

Mas essa situação é reversível?
Outeiral:  Essa situação tem se agravado cada vez mais. Hoje a primeira causa de morte entre adolescentes no Brasil, pelo último censo do IBGE, é homicídio, superando os acidentes, que vêm em segundo lugar. Há 12 anos,  o homicídio vinha em quinto lugar. Vivemos  uma cultura de violência e de morte. Há 20 milhões de crianças abaixo da linha de pobreza no Brasil. É a metade da população da Argentina e sete vezes a do Uruguai. O que serão esses jovens em  dez anos?

Quando a violência  tomou essas proporções?
Outeiral:  Eu diria que todo esse quadro de violência vem desde a colonização, consolida-se com a falsa modernidade, com as contradições sociais que se acentuaram no último século, causando um esgarçamento do tecido social e ético como o que vivemos hoje. O crescimento anômalo dos centros urbanos nas últimas décadas, por exemplo, promove uma situação paradoxal: na multidão o que existe é desamparo e isolamento. O conflito entre civilização e barbárie se estabelece.

E a cultura da maldade?
Outeiral:  Um menino de 8 anos, vivendo a exclusão, com uma arma na mão, tem poucos caminhos que não a maldade. A arma lhe dá visibilidade, poder e prestígio. Em Porto Alegre, metade das crianças de rua está com o vírus da Aids, entre outros, e morrerá antes dos 25 anos. Eles não têm  cidadania sob o ponto de vista político. Não têm viabilidade de existência humana. A violência e o trauma impedem que eles encontrem caminhos, na complexidade da grande cidade, sobre o que é necessário para poder sobreviver. Logo, a maldade encontrará um terreno fértil para se instalar e eles reproduziram a maldade da sociedade que os recebe dessa forma.

O que mais a escola pode ensinar?
Outeiral:  A necessidade de identificação na adolescência é feita além do grupo familiar e a escola oferece novos modelos. A escola pode sustentar o desejo, o sonho e a utopia. Não só das mães e dos adolescentes, mas também dos próprios professores. Deve ser um lugar que ensine a pensar, e estou sugerindo com isso que hoje as crianças chegam às escolas e não pensam. Pensar surpreende o pensador. Pensar é transgredir. Pensar é fundamental. A escola pode ensinar também a brincar. A palavra brincar vem da palavra latina vínculo, e o delinqüente é aquele que perdeu a capacidade de criar vínculos. A escola pode ser um lugar de crianças e de espontaneidade, que caracteriza o brincar.

É a escola e não a família que forma adultos?
Outeiral:  No momento atual, em que as famílias terceirizam para a escola os cuidados parentais, digo que sim. Mais que isso, a escola pode preservar o mundo adulto. Na cultura contemporânea, o mundo adulto vai cedendo para os kid adults, adultos que abdicam de sua posição de adultos e não são modelos satisfatórios para crianças. É interessante observar que é na década de 70  do século passado  que os jovens começaram a chamar os adultos, em geral, e os professores, em particular, de “tios”. Este foi o período quando as cidades começaram a crescer, na verdade sem um verdadeiro desenvolvimento e, sim, como “tumores”. Até então cerca de 75% da população brasileira viviam nas pequenas cidades e em zonas rurais. Na passagem para o novo século encontramos esta relação invertida e 75% habitam os grandes centros urbanos. Na década de setenta, basta lembrar a Copa de futebol daquela ocasião:  cantava-se “…noventa milhões em ação…”, hoje somos cerca de 180 milhões.  Os serviços de saúde e de educação, por exemplo, não acompanharam este crescimento. A escola deve preservar o “mundo adulto”, espécie em extinção na sociedade.

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