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A folia de Tiradentes

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Woden Madruga 
No meio do feriadão da semana passada caiu na minha bacia das almas nova prosa do mestre Florentino Vereda, escrita no Jalapão, para onde voltou após longa temporada por praias nordestinas. Tem o título de lá de cima: “A folia de Tiradentes”. Segue na íntegra:
“Desde que morreu enforcado, decapitado e esquartejado, nunca mais pensou em voltar à Terra. Já poderia ter reencarnado, mas sempre relutara. Embora não mais sentisse as dores físicas das torturas a que foi submetido, ainda lhe doía a alma por saber que seu sacrifício fora inútil. Os ideais que defendia e o levaram à morte há muito foram esquecidos. Há mais de dois séculos juntou-se a um grupo que se dizia revolucionário e iria libertar o Brasil da Coroa Portuguesa, que desde o desembarque em Pindorama saqueava as nossas riquezas, principalmente os metais preciosos de Minas Gerais. Quanta ingenuidade!
A aventura tinha tudo pra dar errado.  A começar pelo nome do grupo: INCONFIDENTES: “(…) que não tem fidelidade, que é desleal, traiçoeiro, infiel, falso, traidor”. Mas naquele tempo ainda não existia o dicionário Houaiss. Hoje se dizem delatores e até são premiados por entregarem seus companheiros quando a coisa aperta. Assim como fez Silvério dos Reis, discípulo de Judas Iscariotes. Hoje não se contentaria com trinta moedas, preferindo receber em ouro de Minas.
Ainda relutante, porém, aceitou voltar às Alterosas. Saudades de Minas, belas paisagens, povo discreto, mas cordial, saudades do pão-de-queijo com uma xícara de café quente numa varanda ao fim tarde. Apenas uma condição impôs: como bom mineiro, antes de vir definitivamente, queria assuntar, caminhar pelas ruas e veredas, mais ouvir que falar. Quem sabe, seu exemplo teria feito o povo perceber que não deve aceitar a falsa segurança dos políticos, mas recusar a esmola que vicia o cidadão e estimula a subserviência, sem a qual nenhum poder se mantém. 
Chegou na madrugada do dia 21, data em que se comemora o seu gesto heroico e inútil. Ao ver as ruas enfeitadas com bandeirolas sentiu-se vaidoso e contente. Não lhe esqueceram!!! Soube que o governo havia “enforcado” a sexta-feira para que o povo pudesse celebrar sua data durante quatro dias. Não se incomodou em dividir as homenagens com um conterrâneo ilustre que morreu quase dois séculos depois da mesma data, pouco antes de assumir a presidência do Brasil.
Depois de almoçar um leitão à pururuca, numa rede na varanda, uma pestana antes de ir pra rua. Certamente haveria uma missa na Basílica do Bom Senhor Jesus de Matozinhos, ainda paramentada para o domingo de páscoa, há menos de uma semana. Ali poderia apreciar a arte barroca do “Aleijadinho”, nascido poucos anos depois que ele se foi. Vestiu roupa domingueira e saiu caminhando em direção à praça onde, rapazote, apreciava as meninas-moças de sua época se amostrarem. Ao longe o som das músicas e dos batuques próprios das festas populares. Não reconheceu naquele ritmo frenético – diferente das músicas do seu tempo – nenhum sentimento de pesar e tristeza, mais condizentes com as cerimônias fúnebres que deviam estar acontecendo.
Sem problema, pensou. Afinal, tristezas não pagam dívidas. E os brasileiros – alguém lhe disse – nunca estiveram tão endividados. Porém, estranhamente, o povo que dançava e cantava parecia alegre e feliz e não havia sinais que demonstrassem qualquer traço de tristeza ou melancolia. Vai ver, errou de país ou de data. Mais parecia uma festa pagã, com mulheres seminuas e homens embriagados, desfilando em grupos isolados por cordas esticadas. A visão daquelas cordas lhe fez arrepiar-se, sentindo no pescoço o nó que lhe sufocara, antes do seu último suspiro. A “derrama” agora era da cachaça que descia goela abaixo e de urina que escorria pelas sarjetas. 
Sem se identificar perguntou a algumas pessoas se aquela festa celebrava os 230 anos da morte de Tiradentes. Ninguém sabia quem foi esse personagem com nome curioso. Talvez algum jogador de futebol ou artista de televisão. Alguém se arriscou a dizer que Tiradentes foi um dos primeiros eliminados no paredão do BBB 13 ou 14. 
Triste e confuso voltou imediatamente pra donde viera. Não há o que se esperar de um país que celebra os mortos de dois dos seus mais expressivos personagens históricos com festa de carnaval.
Se não deu pra enfrentar o rei de Portugal, imagine o rei Momo. ”
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