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A guilhotina de ideias

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Ivan Maciel de Andrade                                                                                                           
Procurador de Justiça e professor da UFRN (inativo)

Sou um leitor assíduo dos escritores portugueses contemporâneos. Ponho de lado o “hors-concours” José Saramago e me pergunto: para quais deles vão minhas preferências? Miguel Sousa Tavares, Lobo Antunes, José Luís Peixoto, Válter Hugo Mãe, Lídia Jorge, Gonçalo M. Tavares? Fico, por enquanto, com o último, Gonçalo M. Tavares, para retirar do livro “O torcicologologista, Excelência” (publicado no Brasil em 2017) uma citação. No capítulo “Como eliminar ideias num século tão limpinho – Eis a questão”, há um diálogo em que um personagem anônimo anuncia à “caríssima Excelência” que vai “decapitar” ideias e teorias “presas” na cabeça de certas pessoas. Excelência se surpreende: isso seria feito com uma guilhotina? E “tal guilhotina seria capaz de cortar a teoria de uma cabeça sem cortar a cabeça propriamente dita?”. Explica o personagem anônimo que “foi isso que encomendou”.

E justifica: “Há ideias por aí que não me agradam”. Trata-se, então, de “guilhotinar apenas uma ideia, uma ideiazinha”. Não a cabeça, insiste: “Não somos nenhuns selvagens”. Mas a ideia é “um material intranquilo” e pode com o tempo ocupar todo o corpo. E “nesses casos para eliminar uma ideia que nos desagrada temos de eliminar por completo o corpo que possui essa ideia”. Chegam, portanto, à conclusão de que apesar de todos os avanços tecnológicos do século atual – “Se queremos eliminar ideias temos de continuar a cortar cabeças, a cortar cabeças com a guilhotina, isto é, com exatidão”.

Weintraub, que ao aludir ao genial escritor Kafka chama-o de Kafta e que não sabe que o verbo “haver” no sentido de existir é invariável, não deve conhecer esse livro de Gonçalo M. Tavares. Talvez nunca tenha ouvido falar sequer nesse ficcionista português. Mas acredito que o ministro se entusiasmaria muito com a hipótese de uma guilhotina de ideias e teorias. Isso o dispensaria, entre outras coisas, de ensaiar uma grotesca paródia – pena que sem os lépidos e glamorosos movimentos de bailarino – de Gene Kelly em “Dançando na chuva”. Ou de bancar o déspota tentando impedir, com ameaças veladas, manifestações de estudantes e professores em favor das universidades federais.

Acho que a guilhotina de Weintraub cortaria primeiro todas as teorias e ideias que ele maldiz e xinga de esquerdizantes e comunistas, num retorno improvável e paranoico ao clima da Guerra Fria, em que intenta substituir o “perigo” representado pela extinta e poderosa União Soviética pelo das fragilizadas e trôpegas Venezuela e Cuba. No entanto, o que Weintraub demoniza mesmo como sendo de esquerda (um conceito de tal amplitude que se atribui esse rótulo ao partido Democrata dos EUA), sabemos muito bem o que seja: a liberdade de pensamento, de crítica e contestação, a defesa de uma educação no estilo libertário, universalizante, isento de preconceitos, preconizado por Paulo Freire.

Já se diz à boca pequena que o comando cerebral de Weintraub é manipulado por Olavo de Carvalho. Verdade ou não, o certo é que se Weintraub – pelo que tem demonstrado – dispusesse da guilhotina imaginada por Gonçalo M. Tavares pouco sobraria de nossas instituições democráticas. Regrediríamos às espessas trevas do autoritarismo, da total intolerância e da mais violenta repressão.

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