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A imagem no espelho

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Ivan Maciel de Andrade
Advogado                      

É sempre um fascinante desafio escolher quais os melhores contos de Machado de Assis. As antologias, eliminando divergências, tendem a estabelecer um consenso em torno de alguns contos que: a) criam um ambiente de magia poética, repassada de sensualidade, ainda mais intensa porque sutilmente insinuada (como em “Uns braços” e “Missa do Galo”); b) abordam com rara força dramática o tema do descompasso entre a ambição artística e o limitado talento pessoal de quem pretende realizá-la (como em “Um homem célebre” e “Cantiga de esponsais”); c) dissecam os sentimentos humanos mais sombrios e obscuros (como em “A causa secreta”); d) assumem amplas, instigantes e questionadoras dimensões filosóficas (como em “O alienista” – obra-prima do humor machadiano).    

Dentre tantos contos geniais de Machado, há um que me impressiona e encanta de forma especial, diferenciada. O conto se chama “O espelho” e traz o subtítulo de “Esboço de uma nova teoria da alma humana”. A história pode ser facilmente resumida, embora, é claro, com grande sacrifício da qualidade do conto. Cinco amigos, “investigadores de coisas metafísicas”, estavam reunidos e, em determinado momento, “a conversa veio a cair na natureza da alma”. Um desses personagens –   Jacobina – “inteligente”, “astuto”, “cáustico”, expôs sua teoria: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro…”. A alma exterior pode ser qualquer coisa: “Há casos, por exemplo, em que um simples (atraente) botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa”. Quem perde a alma exterior, perde metade da existência “e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira”. Lembra o caso de Shylock de “O mercador de Veneza”, de Shakespeare. Vê-se, pela fala de Shylock – “Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração” –, que o ouro era sua alma exterior.

A partir daí, Jacobina narra a história que ilustra sua teoria. “Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional”. O que significou essa nomeação, explica Machado: “O alferes eliminou o homem”. A família de Jacobina passou a viver em função de “seu alferes”. A certa altura, Jacobina atendeu ao convite de uma tia: ela morava num sítio e lhe pediu “que fosse ter com ela e levasse a farda”. O entusiasmo da tia “chegou ao ponto de mandar pôr no quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples”. Mas toda essa alegria foi interrompida por um fato inesperado: a tia teve de ausentar-se.

Jacobina ficou só e sua solidão “tomou proporções enormes”. O tempo passou a ser “um diálogo do abismo, um cochicho do nada”. Ele parecia a sombra de si mesmo: “Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico”. Até a tentativa de olhar-se no espelho resultou aterradora: sua imagem se tornou “vaga, esfumada, difusa”. Foi quando se lembrou de “vestir a farda de alferes”. Conta: “Como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e… não lhes digo nada: o vidro reproduziu então a figura integral; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior”.

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