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A janela

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Cláudio Emerenciano
Professor da UFRN
Há percepções, ambiências, sensações, acontecimentos e personagens que marcam o ser humano por toda a vida. Enraízam-se na alma, no recôndito de cada um, sedimentando referências ou juízo de valor para o futuro. Geram associações no transcurso do tempo. Suscitam a impressão de que se repetem, como se o tempo retrocedesse, ou simplesmente fosse estático e imutável. Sem passado nem futuro. Tudo seria presente. A memória sentimental e afetiva do homem transcende ao tempo. Projeta-o no infinito. Alça-o a voos e a dimensões espirituais, divinos, permitindo-lhe descortinar a beleza e a essência da vida. Os poetas e os pintores, singularmente, possuem esse atributo especial, dom, virtude, aptidão, para captar o esplendor da vida e a complexidade da alma humana. A vida dos homens transcorre envolta multiplicidade de cores do nascimentos à morte. Até os estados de espírito (d’alma) se traduzem, na literatura e na psicologia, por cores e por tons susceptíveis de revelar o humor, a alegria e a tristeza, o êxito e o fracasso, a vitória e a derrota, a esperança e o desespero, a felicidade e o infortúnio. O nevoeiro evoca a amargura de Hamlet, enquanto o arco-íris e a sinfonia pastoral  das aves do céu encobrem o despertar nupcial de Romeu e Julieta. São cenários imortalizados por Shakespeare. 

As circunstâncias atormentadas de Van Gogh não o cercearam ao explicitar em cores seu encantamento com a vida em suas notáveis e fantásticas explosões de beleza. Esse êxtase o inseria na harmonia universal. O turbilhão interior, psicológico, que o sufocava, rendia-se ao ímpeto da sensibilidade para entender sua condição humana e o universo que a cercava. Misturava-se com a natureza, partilhando a simplicidade dos pássaros, das cotovias, dos bem-te-vis e dos canários, exaltando em seus cantos e gorjeios a invasão das primeiras claridades, com as quais a aurora dissipa o manto escuro da noite. Era uma espécie de súplica a Deus para desfrutar em caráter permanente, imutável, sem fim, daqueles momentos gloriosos e arrebatadores. Sentir as vibrações da eternidade. Talvez a mais marcante das referências visuais, que tenhamos do sul da França, ainda seja através das grossas pinceladas de Van Gogh. O céu azul e os girassóis amarelos e alaranjados, a paisagem de Arles e seus arredores. Arles foi um dos locais de maior importância para a obra de Vincent Van Gogh, pois ali criou a maior parte das 500 pinturas a óleo e desenhos no curto período de um ano e meio. Assim encontrou o sol forte, a luz tão diferente do céu cinzento do norte da Europa; as cores do campo, que impactaram sua maneira de pintar. No Brasil Tarsila do Amaral e Anita Malffati (compuseram o “Clube dos Cinco” com Menotti del Picchia, Mário e Oswald de Andrade, na Semana de Arte Moderna em 1922) consagraram as cores vivas e vigorosas de um país multicolorido em suas paisagens, em sua gente, em sua flora e em sua fauna. Ressalte-se a genialidade de Cândido Portinari, manifesta na Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha (painéis da Via Crúcis e de São Francisco de Assis com um cachorro – simbolizando um lobo) e os painéis “Guerra e Paz” na ONU, em Nova York, coerentes com as cores, em tons claros e suaves, da temperança dos brasileiros, infelizmente subvertida e aviltada no presente pela TV e redes sociais. Constatação trágica e macabra.   

Shelley (inglês), Frédéric Mistral (francês), Robert Frost (americano), e Gonçalves Dias, Manuel Bandeira, Vinicius de Morais, Carlos Drummond de Andrade, entre tantos e tantos poetas brasileiros, realizaram soberbo amálgama, imantando suas almas, seu ser e sua criatividade na identidade com a natureza e os homens, concomitantemente mágica e enternecedora, ainda hoje indecifrável e indevassável na plenitude de sua mensagem. Muitíssimo antes, na longitude dos tempos, Penélope, nos versos da “Odisseia” (Homero), em sua ilha de Ítaca, assistia, no cume de um monte, o nascer do dia, exortando à divindade para trazer de volta seu marido e herói, Ulisses, perdido na vastidão de mares e terras distantes. Séculos depois, Virgílio, na “Eneida”, deslumbra-se com a luminosidade, que se irradia, todas as manhãs, das sete colinas de Roma. Shakespeare, gênio, como já se viu, de “Júlio César” a “Otelo”, de “Hamlet” a “Timon de Atenas”, de “Romeu e Julieta” a “Sonhos de uma noite de verão”, dimensionou sentidos múltiplos no espetáculo sempre renovado do raiar do dia. Lembro-me que em uma das minhas visitas à Itália, não me recordo se em Roma, Siena, Florença, Ravenna, Veneza ou Genova, num museu, vi um painel que exibia mulher amargurada, em vestes brancas, num penhasco, encoberta por tênue nevoeiro, contemplando o azul do céu e do Mediterrâneo. Era Penélope à espera de Ulisses. Não me lembro também do autor. Mas não esqueci sua simbologia, que é intemporal. O amor exorciza até a ansiosa espera. 

Na ficção há obras magistrais, inumeráveis, juntando e confundindo a condição humana com a magnificência do nascer do dia. Somerset Maugham, em “O fio da Navalha”, descreve o arrebatamento de Larry Darnell no Tibet, tendo diante de si as neves eternas, a luminosidade e, interiormente, seu reencontro com a fé. O Tibet, cenário real, que Thomas Merton chamou de “o topo do mundo”. Mas Ernest Hemingway, em “Adeus às armas” e em “As neves do Kilimanjaro”, contrapõe os Alpes às montanhas da África, para dizer que, em qualquer lugar da face da Terra, em qualquer paralelo, é impossível o homem não se permitir contagiar com a mensagem de esperança e paz do amanhecer. Liev Tolstói, em “Guerra e Paz”, diz que os homens, em guerra, abjuram esse momento. Como se não o vissem, não o sentissem, pois a violência, que iriam logo mais cometer, qualquer que fosse a causa, afrontava sua dignidade humana. É através da violência que o homem se torna lobo do próprio homem. Ergue dentro si obstáculos intransponíveis ao aprimoramento dos seus sentimentos. O homem que violenta, que mata, que odeia e inveja, jamais poderá amar plenamente. Desconhecer o amor é renunciar a Deus e à vida. É impossível o homem ter consciência da liberdade sem cultivá-la consigo mesmo.

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