sexta-feira, 29 de março, 2024
26.1 C
Natal
sexta-feira, 29 de março, 2024

A Loucura do Dom Quixote de Cervantes

- Publicidade -

João da Mata Costa
Escritor e professor

O renascimento coloca o homem como personagem central do universo filosófico. A cultura deixa a sua hierarquia essencialmente vertical – e passa ser horizontal. Uma cultura de grande beleza plástica e simétrica. Um predomínio da razão em detrimento das superstições e crendices, ainda presentes no dia – a dia das pessoas. A convivência entre razão e loucura está muito presente nas obras renascentistas. Erasmo escreve o Elogio da Loucura onde a loucura é tratada poeticamente e Maquiavel escreve o “Príncipe”. O Príncipe – ao mesmo tempo que precisa ser prudente e justo -, necessita também reconhecer a força do imponderável, do imprevisível daquilo que não se reduz ao factual. Diz Erasmo, que teve grande influencia na cultura renascentista: “muitas vezes, também o homem louco fala judiciosamente”. A influencia de Erasmo pode ser percebida no Quixote, na medida em que sua loucura é uma loucura que pode ser percebida em cada um de nós. Eu, você, o Cura, o Barbeiro e Sansão Carrasco somos todos loucos. A loucura como tolice, benção é crucial para toda empresa de louvor irônico.  Uma força unitária e contagiosa assim como as crenças folclóricas. Por toda a idade média, a loucura serviu de disfarce para antigas formas de paganismo mágico ( Zijderveld). Como obra renascentista, o Dom Quixote faz da loucura um dos seus temas principais.

Na metade do século XVI no ocidente, desaparece o caráter sagrado da catástrofe. Desaparece o lado benéfico numa dessacralização da loucura.  A loucura emergente é um evento coletivo vivido na solidão ( Grivois, chefe de psiquiatria do Hospital Municipal de Paris). A demência é a experiência  individual de uma crise coletiva.  O que obrigou Cervantes a romper com a multidão, salvar o louco de seu destino imemorial?  Não foi so compaixão, conquanto sem dúvida o tenha sido -, mas uma mudança de perspectiva, de enfoque da visão pública, coletiva para a individualizada.

Cervantes diz que o Quixote perdeu completamente o juízo. Mas, se Alonso Quijano tivesse perdido completamente o juízo não haveria o Dom Quixote. Um louco com muitos intervalos de lucidez. O romance moderno e a psiquiatria exercem o mesmo processo histórico de dessacralizar a loucura.  A alienação mental nunca é completa: o alienado conserva sempre um distanciamento de sua alienação.  Escreve Pedro Garcez Ghirardi na introdução ao Orlando Furioso (Ateliê Editorial): Assim no centro do renascimento, com Maquiavel e Ariosto, está o diálogo entre razão e loucura, diálogo oposto ao furor bestial ou do racionalismo abstrato. O Recuo da loucura, nesse diálogo, levará ao desequilíbrio do classicismo maneirista; seu contra-ataque levará ao Barroco; sua derrota no século das luzes, levará ao monólogo da razão triunfante.

Para Erich Auerbach em Dulcinéia encantada, ele não tinha rival na representação da realidade comum como uma festa contínua. A loucura do Quixote não é total. Dom Quixote só está errado quando está louco. Um louco ao mesmo tempo sábio. “ Pois é nas asas da loucura que a sabedoria alça vôo, atravessa o mundo  e se enriquece nele, pois se D. Quixote não tivesse enlouquecido, não teria deixado sua casa e então Sancho teria ficado em casa”. O jogo dos dois mundos não se teria realizado.  Para Auerbach, Dom Quixote é louco, todavia, sua loucura serve de receptáculo onde a sabedoria pode se desenvolver.

A insanidade do cavaleiro da triste figura é o leit motiv de toda a trama romanesca do maior romance de cavalaria. Se o Quixote não tivesse enlouquecido não teria saído por três vezes de casa. Quando ele recobra a razão logo morre. Sua razão era o pelejar.

- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas