sexta-feira, 29 de março, 2024
26.1 C
Natal
sexta-feira, 29 de março, 2024

A palavra de Dorian Jorge Freire

- Publicidade -

A minha infância, a minha adolescência. Dizer que houve aquele tempo e não pude cativá-lo… Deixei escorresse entre os dedos, ouro em pó. Quando via os meus filhos, pensava. Brincavam com a meninada da vizinhança. Todos com os mesmos casos, a mesma ausência de problemas. Conversavam, riam, brigavam. Idênticos em tudo. Não sabiam que viviam um paraíso. E que havia, como ameaça, o tempo. O relógio, a sombra. O abandono do claro do dia. Quando menos esperaram, veio a vida que maltrata, e tritura, e deforma. Caminhavam inocentemente, mas iam deixando o paraíso. Inútil advertir.

– Folguem. Mais intensamente. Corram mais, riam mais alto. Olhem mais detidamente as suas mãos de crianças, as suas pernas ligeiras. Vejam os olhos, vejam os amigos. Não percam um minuto.

Não entenderiam, é claro. A felicidade é aquilo: ignorância satisfeita, prodigalidade. Deixar que a alegria corra sem freios, sem pena, sem sovinagem. Sempre assim. A roda gigante, em circular infinita. No começo, os dentes afiados que não atingem a pele. Depois, crescidos, começam a lanhar o couro.

No meu tempo de criança, passava o dia inteiro seminu a brincar. Esconde-esconde, tique, dona de barra, procissão, circo, arengas com empregadas, rolar no chão, mexer em guardados indiferentes. Correr de velocípede, discutir besteirinhas, trocar novidades. Alegria no reencontro com o Pai que chega. Jantar barulhento. “Psius” dos velhos, admoestações. Conversas na calçada: estórias de Trancoso. A Segunda Guerra Mundial: Japão e Alemanha. A Alemanha era um país terrível, governado por um assassino. E o Japão ficava embaixo de nossos pés, no oco do mundo. Centenas, milhares de metros abaixo de onde ficavam guardados os mortos. Cinema era novidade domingueira. Havia o rádio, os jornais. Meu Pai assinava jornais de várias capitais. Era, acredito, o homem mais bem informado da cidade. O rádio era coisa para adulto. O lá de casa era enorme, pesado e negro. Uma caixa alta. “Holandês do bom”, explicava o Velho. E um vizinho que, todas as noites, vinha buscar notícias da guerra, acrescentava: “Pega até a BBC…” O gabinete de meu Pai. O divã perto do rádio. Estantes nas paredes: Pitigrilli, Ruy, Vargas Villa, João do Rio, Constallat, João Grave, Machado, Eça. Num canto, a escrivaninha linda de minha Mãe.

Minha Mãe ficava pastorando as nossas brincadeiras. Até que da cadeia a corneta anunciava nove da noite. Tomar a benção, fazer xixi e rede. Minha irmã brincava de rodas e eu preferia o jogo de anel. No jardim defronte, a molecada livre e longínqua, solta e temerária. Não me perdoava o brincar distante, a marginalidade, a intimidade com as meninas.

– Bendito sois entre as mulheres!

Faz tanto tempo! Curioso: brincando com as meninas, jamais houve preocupação sexual. Éramos todos assexuados. Sexo chegou mais tarde, aos 13 ou 14 anos de idade. Antes, era tudo ignorância. Estava convencido de que os meninos vinham por obra e graça do Espírito Santo, nascidos em operação abre-barriga. Taludo, um amiguinho quis que eu resolvesse a contenda porque outro assegurava que os meninos resultavam de uma relação sexual entre os pais. Achei repugnante esta versão e a desmenti, com ênfase…

Hoje, esses dias de ontem já morreram. E cada vez mais eu acho que vive-se para trair a infância. Só não a traem, os que morrem na sua idade. Vejo meus filhos, ouço as suas gargalhadas. Vivem a sua infância, agora. Amanhã, adultos, dirão o mesmo diante do mesmo quadro e de seus filhos. Saberão, como eu sei agora. Mas já será tarde.

São velhas histórias, antigas recordações. Mas as velhas histórias também contam. Mesmo porque deixam, naqueles que as viveram, as suas grandes marcas. Indeléveis. Condicionando quantas coisas, meu Deus, no seu modo de ser, de pensar, de agir! Em Pequeno Mundo, Hesse mostra como fatos havidos como insignificantes têm a força de alterar caminhos e estabelecer destinos.

Somos providencialistas, claro. Não fatalistas. Nada acontece fora da vontade de Deus. As coisas seriam diferentes se outras, anteriores, tivessem sido diferentes.

Conheci alguém, nos meus idos, que tinha tudo para uma realização pessoal fácil. Era inteligente, possuía curiosidade intelectual, convivia com livros e idéias, era filho de intelectuais, cooexistiu, desde menino, com as coisas da inteligência e do espírito. Não foi bom aluno. O exemplar. O primeiro. Nem era um passivo. Era rebelado, estouvado, meio fora de sério. Com rompantes, exageros e explosões não só próprios da idade, mas comuns em adolescentes chegados às idéias. Não foi personificação de bom senso, talvez o temperamento atirado o conduzisse à prática de crueldades. À sua superestimação e à subestimação dos outros. Principalmente dos hierarquicamente seus superiores na ocasião.

Criou-se em torno dele, por parte daqueles superiores, não direi uma conspiração. Seguramente, um mundo de humanos preconceitos. Mais velho, mais vivido, mais sensato, poderia ter rompido o cerco e restabelecido a paz. Mas era um menino. E respondeu à antipatia com a sua agressão. E dividiu o seu mundo entre os capazes de compreendê-lo e … os outros. Os outros incapazes, ineptos, medíocres.

De súbito, a corda rompeu do seu lado fraco. Fosse um sensato, tentaria desembaraçar-se do empecilho. Sendo um maluco, rompeu com o estabelecido pelo gostinho de não dar o gesto. Aquilo deveria ter sido um acidente. Transformou-se em coisa terrível. Porque como se não lhe bastasse o tropeço, não de todo injusto, teve de amargar a traição, a deslealdade, a ingratidão, o desrespeito à amizade. Tudo isso da parte daqueles mais próximos, imaginavelmente mais identificados com a sua alma, mais abertos à compreensão de suas verdades. Que o tratassem com rigor os que não o entendiam, aceitava. Que ao saber de conveniências os amigos deixassem o amigo ficar falando sozinho e contribuíssem para aprofundar o seu abismo, a sua juventude em flor não podia perdoar.

E o menino deixou a estrada larga. Passou ao matagal, à selva selvaggia. As ambições se frustravam diante da realidade. Havia que enfrentar o mundo sem os instrumentos que fazem a luta menos árdua. Não foi apenas alcançado por um acidente-incidente. Foi esmagado. Enquanto os demais seguiam na alameda, ele penava. Só Deus sabe como e quanto.

Tanta coisa fez, que é impossível saber se foi melhor assim ou se teria sido melhor diferente. Através de suas forças, realizou o que nem sempre conseguem os outros realizar com o arrimo de melhores situações. Tornou-se conhecido. Deu-lhe Deus a oportunidade de participar da construção de alguma coisa. Discutir problemas, pensar e repensar idéias, estabelecer diálogos, servir, às vezes, de conforto para os outros.

Passados tantos anos daquelas acontecências, em mais um de seus rompantes se submete às regras e, em 30 dias, salta os obstáculos. Supera, de um pulo, tudo. E se coloca na vida universitária. Em um mês, seis anos.

Como fatos em si ligeiros, tomados sem reflexão, ao arrepio da sensibilidade moral, frutos de pouquíssimo respeito pelo nosso semelhante, mudam, alteram, modificam a vida. Naquela época colocada no pretérito, quem haveria de imaginar que o rigorismo aliado à deslealdade haveria de marcar tão dolorosamente uma vida? Eu disse uma vida? Tantas vidas. Que não há homem cuja vida não se entrelace com a vida do outro. Que não há ilhas humanas. A vida daquele, mais as vidas de seus pais, mais a vida de sua mulher, mais as vidas de seus filhos. Lutas, fiascos, lágrimas, noites de vigília, perplexidade, instabilidade, insegurança.

Segundo Bloy, das faculdades humanas a memória foi a mais atingida pela Queda. Os homens esquecem. Mas Deus não esquece porque não é humano. Deus não esquece. Perdoa. Ou não perdoa…

- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas