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A palavra que corresponde

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Lívio Oliveira
Advogado público e escritor/[email protected]

A PRIMEIRA CARTA que escrevi na vida foi para a minha avó paterna, Dona Clotilde, que morava em João Pessoa. Era uma atividade da escola. Fiz a cartinha com um cuidado imenso, um amor colossal, tudo guardado no envelope de papel leve e com margens em verde-e-amarelo. No lado do destinatário havia uma expressão: “Via aérea”, que às vezes era grafada em francês nessa espécie de envelope: “Par avion”. Quando a enviei, após lamber e colar o selo ordinário (meramente comercial, sem valor filatélico), verdinho, do garimpeiro, fiquei aguardando dias pela resposta. Achava que o tempo não passaria, tamanha a ansiedade da espera. Aliás, uma ansiedade que nunca me abandonou, mesmo após aquela tarde em que, ao voltar das brincadeiras de rua, alguém me anunciou que a carta de Vovó Clotilde havia chegado em casa. Eu dava pulos de alegria! Urrava de felicidade! Tanto me emocionei que cortei a pele de um dedo na lâmina do papel da carta, ao arrancá-la do envelope.

2. A PEQUENA MANCHA enegrecida de sangue ficou misturada às palavras da minha avó enquanto a carta durou nos meus arquivos infantis. Essa mancha de sangue ainda mobiliza a minha escrita, que tento ainda hoje engendrar, a respeito das coisas essenciais da vida, que a minha avó, com a ajuda e acompanhamento da minha Tia Eunice, percebera e incentivara já naquela época. À minha palavra infantil e ao meu sonho de ler a resposta correspondeu a minha avó, com as suas palavras retorcidas, mas caprichadas, com a sua longa experiência e a sabedoria que ficava evidente, sempre por trás dos óculos grossos sobre os livros que lia, numa cadeira de balanço e palhinha, lá na Alameda Faraco, na Capital da Paraíba, tão longínqua naqueles dias esperançosos.

3. AS CARTAS que um dia escrevi e aquelas que recebi das mãos de carteiros — uns que tinham nomes e se faziam conhecer no Barro Vermelho, território que percorriam a pé  — não mais existem, palavras desintegradas pelo tempo e pelos novos hábitos, algo que se substitui com uma urgência incômoda, tudo tão fugaz. Adorava a expressão “correspondência”, porque parecia haver sentido nos intercâmbios inaugurados, alimentados, ampliados.

4. AS TECNOLOGIAS avançaram sobre a nossa memória e sobre a velha harmonia, mesmo que aparente, mesmo que retardatária, das coisas. É como uma grande escavadeira rasgando com as suas garras um velho hotel, já invadido por fantasmas oportunistas. As relações se apresentam quase que mecânicas, numa troca mais pragmática e em face de interesses imediatos, muito menos pelo prazer de se envolver com a realidade compartilhada do outro. Por isso, para me manter são e distante dessa acomodação às avessas, muito mais inquietação perturbadora, teimo em cultivar passadismos, miudezas aleatórias, objetos démodés (percebi-me, dia desses, folheando um velho álbum de selos, sobre um tabuleiro arranhado e fosco de um jogo de Xadrez de madeira). Descobri, somente naquele instante, que tenho hoje que jogar, solitário, permanentemente com as peças brancas e com as negras, num jogo que não tem emparceiramento. O desafio é dar dignidade a ambos os exércitos, que se digladiam dentro de mim, aguardando o xeque-mate ou a queda pesada e antecipada de um dos reis.

5. DE REPENTE VEJO passar, ao ler um volume de memórias, a imagem de um seriado antigo, daqueles com abertura espetacular e música orquestral, coisa dos anos 60 ou 70. Não sei porque a mente trabalha essas nostalgias de maneira quase masoquista, como se tudo fosse muito impalpável, diante do tempo que passou e levou um bocado dos sentidos que dávamos às coisas. A qual corresponde? O palimpsesto da memória às vezes só revela dor onde antes havia sonho. É como se guardássemos em nós fósseis, pedaços de corais ressecados, peles trocadas que já se desintegram com um simples sopro de brisa.

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