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A partilha

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Cláudio Emerenciano
Professor da UFRN
Há cenas, circunstâncias e ações que nos remetem ao sentido das coisas e da vida. Há contemplações que suscitam êxtase, perplexidade, encantos ou sobressaltos. Nada, entretanto, é mais sublime, mais arrebatador, mais deslumbrante, do que o vôo mental do homem para dimensionar, como disse o padre Teilhard de Chardin, seu lugar no universo. Ascensão espiritual e sem fim para alcançar o liame, o vínculo eterno de amor entre Deus e a Criação. Assim o gênio e a espiritualidade de Santo Agostinho descortinaram a “Cidade de Deus”: meta final de um percurso, trilhado por justas ações humanas, que ele chamou de “Cidade dos Homens”. Nos dias atuais, em dimensão planetária, a humanidade constrói essa “cidade” fértil em felicidade, justiça e paz?

 Há um espírito do tempo. Manifesta-se em cada fase dessa vertente do homem em busca de Deus e de si mesmo. O bem maior, insuperável, infinito, universal, é o amor. O bem se distribui, partilha-se, difunde-se, desfruta-se, solidariza-se.. Sua destinação é irmanar, congregar, integrar, pacificar e harmonizar. É também o exercício dos direitos de cada ser humano, dádiva de Deus e legado da civilização. Caminho do nascimento à morte para usufruto da felicidade. Eis por que São Tomás de Aquino, outro gênio do cristianismo e da humanidade, sentenciou que a vocação do homem é ser feliz. A infelicidade é o legado do mal. Em todas as suas expressões. O mal contagia, contamina, afeta, destrói, subverte. Vivemos, em âmbito universal, mais uma circunstância traumática de confronto entre a luz e as trevas e de opção entre o Ser e o Ter. Mudanças políticas, ideológicas, econômicas, científicas e tecnológicas sem precedentes, nos últimos cinquenta anos, não foram capazes de eliminar, coibir ou inibir as velhas antíteses da condição humana: guerra, imperialismo, miséria, violência, ódio, injustiça, iniqüidade, hipocrisia, cinismo, impiedade, fanatismo e insanidade. Especialmente de poderosos nos campos político e econômico.

Não foi possível, ainda, erradicar o que Barbara Tuchman (historiadora e professora da Universidade de Harvard) chamou de “A marcha da insensatez”. Pelo contrário. A presença de homens como George W. Bush e Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos tem sido um retrocesso inimaginável para a vida humana e ambiental do planeta. Não se pode ignorar o peso e a responsabilidade dos Estados Unidos, a partir de 1945, na vida das nações. Eis um fato inquestionável, que somente fanáticos e ilógicos teimam em contraditar. Por isso a ordem mundial, idealizada principalmente pelo grande Franklin Delano Roosevelt, vem desmoronando irreversivelmente nos últimos cinquenta anos. A ruptura causada por conflitos da dimensão da guerra do Vietnã e outros, com o holocausto de populações civis, fragilizou a hegemonia de princípios e ideais. São conclusões ainda atuais do então senador norte-americano William Fulbright, em seu livro “A arrogância do poder”. Infelizmente, desdobramentos antevistos nas memórias de homens da estatura de Winston Churchill e Charles De Gaulle se consumaram, germinando a atual conjuntura, em que se sobressaem o desequilíbrio ambiental do planeta, o agravamento dos surtos de refugiados, vítimas de violência sem precedentes em seus países, o terrorismo urbano, o desencanto e a perplexidade das novas gerações, submetidas ao desemprego e ao aliciamento das drogas e do crime organizado. Esfumou-se, submetida aos arroubos de ignorância, truculência e autoritarismo dos presidentes norte-americanos já citados, a cultura universal da paz, fundamentada na primazia da condição humana, garantida por ampla justiça social e erradicação de privilégios. Em tempos nos quais vozes medíocres e ignorantes se levantam contra os fundamentos do humanismo, legado dos gregos e do cristianismo, ocorre-me um trecho de conversa entre Gustave Flaubert e George Sand: “O que importa, muito mais que o homem, é sua obra”. A observação não se choca com os Evangelhos. Porque a dimensão do homem emerge dos seus atos, da sua forma de agir ao vivenciar o amor, a justiça, a fé, a esperança e a caridade. Por isso Bento XVI, exegeta da fé cristã, sentenciou: “Deus caritas est” (“Deus é caridade”). Sem dúvida alguma, nos dias de hoje, os homens carecem de caridade. Cada homem precisa identificar em seus semelhantes a irmandade em Cristo Jesus. Os cristãos se esquecem no seu cotidiano dessas palavras de Jesus Cristo: “Eu vim trazer misericórdia”. A parábola do “Filho Pródigo” tipifica a relação entre Deus e a humanidade. Deus é perdão, é misericórdia. Entretanto, muitos clamam por perdão, mas não querem perdoar.   

Tudo quanto é belo e verdadeiramente humano é partilhado. O amor autêntico, legítimo, indestrutível, transcendental, é uma partilha. Nossa fé cristã emerge de um ato de partilha do próprio Deus, que se incorporou à condição humana através do seu Filho, Jesus Cristo. O cristianismo legou uma ética e uma moral indispensáveis a uma vida social justa e pacífica. Não são princípios puritanos, ortodoxos, piegas, hipócritas e farisaicos. Consagram a dignidade da vida individual e coletiva. O que não acontece no momento no mundo e particularmente no Brasil. A Igreja Cristã Coopta (fundada por São João Evangelista) reconhece os Evangelhos Apócrifos, entre eles o de Tomé. Eis palavras atribuídas a Nosso Senhor: “Asseguro-vos que aquele que me seguir não andará em trevas, mas terá um sol a guiá-lo, maior e mais perfeito do que este que marca o dia e que nos aquece”. Invoco, pois, Antoine de Saint-Exupéry (“Terra dos Homens”), que singelamente previu a tragédia desses tempos: “Quando, por mutação, nasce nos jardins uma rosa nova, os jardineiros se alvoroçam. A rosa é isolada, cultivada e favorecida. Mas não há jardineiros para os homens”.    

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