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A poesia do tempo

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Quando as cores ternas e suaves emolduram o firmamento ao amanhecer, em súbito e arrebatador instante, o manto escuro da noite se esfuma, fulminado pelo triunfo da luz. Também quando o sol começa a reclinar, deslumbrantemente nas tardes de primavera e verão, repete-se, invariavelmente, o espetáculo fecundo em paz e esperança, harmonia e mansidão, relaxamento e serenidade. Renova e inspira a poesia do tempo. A variação e as mutações de cores são as mesmas. Curiosamente, em todas as partes do mundo, a vida e a natureza se misturam. Só se integram sem os extremos devastadores do frio ou a tórrida agressividade do semi-árido e dos desertos. Então as aves do céu entoam seus cânticos e suas sinfonias. A natureza inteira canta ao universo. Todavia até o deserto suscitou manifestações impactantes e imprevisíveis. Tema consagrado por Thomas Edward Lawrence (“Lawrence da Arábia”) e Antoine de Saint-Exupéry. O primeiro, em livro notável e arrebatador, digno do Nobel da literatura. Autobiográfico. Profundo em termos poéticos, filosóficos, históricos, antropológicos e existenciais: “Os sete pilares da sabedoria”. Descreve inclusive cena desconcertante, quando um sheik lhe pergunta a razão do seu fascínio pelo deserto. Respondeu, contundente e sumariamente: “Porque é limpo”. O outro, que também conviveu com o deserto e seus povos nômades no norte da África, em “Cidadela”, disse que o deserto suscita no homem a reflexão de que “quando o corpo se desfaz, o essencial avulta. Pois o homem alicerça um emaranhado de relações. As relações revelam a essência do homem”. Em “Terra dos homens” voltou ao assunto, afirmando que “o mais maravilhoso, contudo, é que houvesse ali, de pé, sobre o dorso curvo do planeta, entre aquele branco lençol imantado do deserto e as estrelas, uma consciência de homem, na qual a breve chuva noturna pudesse se refletir como espelho. Dali se vislumbrava um viveiro de estrelas”. Ainda em “Terra dos homens” descreveu penosa caminhada no deserto, quilométrica, para encontrar socorro, após uma pane do avião. Revelou que sentiu “uma alegria talvez pueril em marcar com os meus passos um território que ninguém nunca, nem homem, nem bicho, havia pisado”. Assim constatou, concluindo: “A verdade para um homem é o que faz dele um homem. Verdade que o impulsiona para Deus. A busca do infinito”. É a síntese mais concisa, intemporal de sua obra:  a dimensão do amor, das relações e da vida. Ideias, sonhos, atitudes e relações revelam a grandeza do homem.      

O homem e a natureza são personagens dessa poesia de todos os tempos.  Ode que sublima a essência da vida. Seus melhores intérpretes, desde primórdios da civilização, são poetas, pintores, cronistas, músicos, cantores em todas as variáveis da cultura, línguas e dialetos; por fim ficcionistas, que não podem abdicar da identidade e do compromisso com a elevação espiritual, cultural e moral da humanidade. Chateaubriand encanta e enternece, até hoje, com a descrição da explosão de vida em “O amanhecer e o entardecer no Novo Mundo”. Ernest Hemingway, em seu estilo personalíssimo e aliciante, preciso e forte, fascinante e soberbo, estabeleceu excepcional contraponto entre os Alpes (em “Adeus às armas”), os altiplanos africanos (em “As neves do kilimanjaro”), Paris, do alto de Montmartre, e os Pirineus ocidentais (em “O sol também se levanta”) e, enfim, a épica luta de Santiago ao enfrentar tempestade no mar (em “O velho e o mar”). A lista é interminável. É a própria literatura fluindo em toda a vertente do tempo. Liev Tolstói (em “Guerra e Paz”) e Boris Pasternak (em “Doutor Jivago”) inseriram leitores, universalmente, em belezas estonteantes de campos, vales e planícies da Rússia; do mesmo modo que o sueco Axel Munthe converteu seu retiro de Anna Capri, na baía de Nápoles, no lugar mais próximo do paraíso (em “O Livro de San Michele”). Mas o inglês Somerset Maugham revelou a intensidade e a magia da vida, as cores e as belezas que contagiaram o gênio de Gauguin (em “Contos dos mares do sul”), sem antes incursionar pelos enigmas do Tibet em “O fio da navalha”. Gabriel Garcia Márquez (em “Cem anos de solidão”, “O outono do patriarca” e “O amor nos tempos do cólera”) desvendou o universo e as circunstâncias ambientais – por que não dizer telúricas? – do seu realismo fantástico.

No Brasil não se esqueça do lirismo ecológico de Gonçalves Dias. Mas Jorge Amado, em sua fantástica obra ficcional, José Lins do Rego, sobretudo em “Menino de Engenho”, “Bangüê” e “Fogo Morto”, José de Alencar principalmente em “O guarani”, “Iracema”, “O tronco do Ipê” e “O gaúcho”, Érico Veríssimo em “O tempo e o vento” e “Olhai os lírios dos campos”, Graciliano Ramos e muitos outros em nossa fertilíssima literatura, mergulharam na exuberância da beleza que revigora, sem fim, o poema do tempo e da vida no país. As crônicas de Rubem Braga, entre tantos expoentes do gênero, expuseram o amálgama entre natureza e a cosmovisão do carioca. Antônio Maria desvendou o ser e a natureza do Rio em crônicas, poesias, músicas e peças teatrais. Também os inimitáveis Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes e Tom Jobim. José Lins do Rego, em crônicas, relacionou natureza e música no Rio de Janeiro.

O sentido das ações humanas vincula os sentimentos. O homem sempre faz, constrói, elabora, cria, procura e descobre em função de sentimentos. Os ideais de justiça, bem-estar, paz social, solidariedade humana, nascem no coração de cada homem. Mas o sentimento tem sua fonte inesgotável: a espiritualidade. O sentimento do amor é infinito. Vínculo eterno entre o homem e Deus. A Criação é ato universal. As civilizações desmoronam por ausência ou negação do amor. Amplifica-se, via redes sociais, a escamoteação do sentido e do papel do amor. Aviltá-lo, deformá-lo, restringindo-o às relações físicas e materiais, aos efêmeros e ilusórios fins da sociedade de consumo, é condenar a condição humana à falta de sentido. O poema do tempo é o salmo do amor de Deus pelo homem e toda sua Criação. Chesterton, Péguy e Thomas Merton proclamaram também essa percepção: o amor é o elo do homem com Deus. Libertação sem fim. Infinita.   

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