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A raposa e as uvas

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Ivan Maciel de Andrade                                                                                                           
Advogado                      

Para chegarmos à democracia sob a qual vivemos, com todas suas falhas e limitações, foram necessárias muitas lutas: alguns sacrificaram a própria vida, outros tiveram de amargar um longo exílio. Em certos momentos, predominou o desespero, eclodiu o desânimo, criou-se a terrível sensação de que nada se podia fazer diante da opressão e do terror que tomaram conta do país. Quase não tínhamos mais esperanças de que seria restabelecido um clima de normalidade democrática, com restauração dos direitos individuais, da liberdade de expressão, da prerrogativa de escolha dos governantes pelo voto direto e secreto. As trevas foram se espessando cada vez mais.

A crítica ao governante de plantão era tida como ato subversivo, a divergência como ameaça às instituições, a mobilização de pessoas ou grupos para manifestações contrárias ao regime como crime contra a segurança nacional. Tudo isso ensejava prisão, tortura e até mesmo morte, disfarçada, para evitar incômodas repercussões internacionais, em mal engendrado suicídio, como aconteceu com o jornalista Vladimir Herzog. Não era fácil opor-se ao arbítrio, à opressão, aos desmandos. Não era fácil sequer o exercício do magistério superior. O “status quo” estava garantido por baionetas e tanques.

Agora, temos uma Constituição liberal, atenta aos direitos dos cidadãos, às conquistas sociais, à organização e atuação dos partidos políticos, ao funcionamento dos Poderes, à liberdade de expressão. Como se pode aceitar, a esta altura, uma pregação que objetiva regredir, reimplantando um regime ditatorial? Quais os pretextos e subterfúgios com que se pretende defender e justificar uma solução teratológica como essa? A ideia é incrementar o combate à corrupção? É resgatar a eficiência dos serviços públicos? É fomentar o crescimento nacional? E, para isso, é preciso reingressar no obscurantismo da autocracia, destruindo os valores democráticos, tão duramente reconquistados?

Parece a história (só que às avessas, ao contrário) que é contada na fábula de Esopo e reproduzida por La Fontaine – “A raposa e as uvas”. Desta vez, a raposa encontrou, ao alcance das mãos (das patas), uvas maduras, o regime democrático. Colheu as uvas e passou a comê-las gulosamente. Mas, de repente, resolveu desdenhar as uvas maduras. Preferiu que elas fossem verdes. Não para desprezá-las, como na fábula, quando eram, então, inalcançáveis, mas para degustá-las.

Que, ao invés de eleito pelo povo, melhor seria que o presidente da República fosse nomeado por uma suposta elite. Que se providenciasse o fechamento do Poder Legislativo e a imposição de restrições draconianas ao Judiciário. Que se decretasse o fim da liberdade de imprensa, através da censura. Que se extinguissem os princípios da presunção de inocência e do devido processo legal.

Só com as uvas verdes, pensa a raposa, ou seja, com o totalitarismo, se acabaria com a corrupção, se modernizaria e qualificaria a prestação dos serviços públicos, se devolveria aos eixos a economia e, de quebra, se conseguiria dominar e subjugar o crime organizado e o desorganizado. Ah, raposa idiota que mal sabe que as uvas verdes são péssimas e, por isso, impróprias para consumo.

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