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A sátira machadiana

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Ivan Maciel de Andrade – advogado

O erudito e irreverente ensaísta José Guilherme Merquior, falecido prematuramente, publicou um estudo sobre Machado de Assis com o título de “Gênero e estilo de ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’” (1972). Esse ensaio, com o novo título de “O romance carnavalesco de Machado”, foi usado como prefácio da edição de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” da editora Ática (1975). Em 1989, Merquior proferiu conferência – “Machado em perspectiva” – no “I Encontro de professores de literatura brasileira: ‘Machado de Assis, texto e contexto’.” Há duas observações feitas por Merquior que eu gostaria de comentar. Uma delas se baseou em pesquisas do sociólogo francês Roger Bastide: os romancistas, poetas e pensadores brasileiros pós-românticos “construíram obras numa escrita mais difícil, mais complexa, mais sofisticada do que a maioria dos românticos”. Machado de Assis, por exemplo, foi o único de nossos ficcionistas a se interessar, até então, pela leitura dos filósofos. Afirma Merquior: “É inegável que Machado de Assis não só leu, e leu muito, Schopenhauer, como o compreendeu – o que não era pouco em sua época”. Por sinal, registra Merquior com admiração: “Machado cita com abundância, é o campeão das citações na literatura brasileira, e faz um uso muito especial dessas citações”. Essa visão cultural abrangente de Machado mostra que ele foi o principal representante da geração sofisticada pós-romântica.

A outra observação de Merquior que me parece merecer destaque é quanto ao gênero da ficção machadiana. Em sua chamada primeira fase, ele escreveu romances e contos que tinham conotações românticas e ao mesmo tempo realistas. Mas depois, na segunda fase, a classificação nunca é satisfatória – não se enquadra nos padrões do realismo nem do naturalismo – e chegou a predominar a interpretação de que sua obra estaria fora ou acima de qualquer classificação. Merquior assinala que Machado não foi um “aplicador disciplinado” dos cânones da ficção realista. Então se propõe a revalorizar uma antiga hipótese: a possibilidade da vinculação de Machado com a sátira menipeia, um gênero cômico-fantástico ou sério-cômico, chamado também de “luciânico” (em homenagem a seu iniciador Luciano de Samósata, filósofo cínico nascido na província romana da Síria e que viveu entre 125-181 d.C.). Ivan Teixeira (“O Altar & o Trono”, bela edição da Ateliê, 2010) endossa a viabilidade desse vínculo. Na realidade, o estudo mais completo sobre a relação de Machado com a sátira menipeia (à qual se filiam Erasmo de Roterdam com “Elogio da loucura”; Rabelais com “Pantagruel”; Swift com “Viagens de Gulliver”; Voltaire com “Micrômegas”; Quevedo com “O Gatuno”, Joyce com “Ulisses” etc.) é de Enylton de Sá-Rego. Seu livro, esgotado há anos, é “O Calandu e a Panaceia: Machado de Assis, sátira menipeia e a tradição luciânica” (1989).   

Ivan Teixeira descreve as características da sátira menipeia ou tradição luciânica: a) “abandono dos gêneros puros da tradição clássica, colocando a fantasia a serviço da criação de situações extravagantes”; b) “fusão de elementos pertencentes a gêneros distintos da história literária, em que o sério se mistura com o cômico”; c) caricaturas, humor irreverente, a paródia ou imitação burlesca “às estruturas consagradas pela cultura”; d) reflexão filosófica “sobre a cultura e não sobre a natureza”. A sátira menipeia está presente de forma ostensiva em “Memórias Póstumas” e de maneira discreta em suas outras obras da segunda fase, sendo que, nos contos, conforme Merquior, a influência da grande ficção realista nunca desaparece, embora Machado sempre se afaste dos padrões de verossimilhança. Por sinal, Merquior elogia Machado como o maior contista em língua portuguesa e diz que “Dom Casmurro” fica “ao lado” de “Madame Bovary”, de Flaubert, e de Anna Kariênina, de Tolstói, “como o terceiro grande romance oitocentista sobre o tema do ciúme”. Nas crônicas, Machado ensaiava suas novas técnicas ficcionais, entre elas a sátira menipeia. Como se vê, estão se multiplicando os estudos profundos sobre a obra machadiana. 

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