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À sombra do passado

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Cláudio Emerenciano
Professor da UFRN

Gestos, sonhos, atitudes, ideais e sentimentos coletivos revelam a personalidade de um povo. O brasileiro, como nação, jamais disfarçou, desde os primórdios de sua formação, sua tendência para conciliar, harmonizar e convergir. Também para perdoar, esquecer, anistiar e esperar. Inclusive no âmbito das relações eminentemente pessoais. Nunca, em nenhum momento de sua História, suas instituições se impregnaram de ódio, ressentimento, violência e desumanidade. Pelo contrário. A tolerância tem sido traço indiscutível da herança cultural brasileira. Apesar de estruturas políticas geradoras de privilégios e injustiças sociais, que prevaleceram por muito tempo. Raimundo Faoro as estudou magistralmente em “Os donos do poder”. Os surtos autoritários, que afrontaram e tentaram aviltar essas características nacionais (1937 e 1964), fortaleceram ainda mais a crença nacional nos institutos e valores da democracia representativa, pluralista e cristã. Os malfeitos que a nação repudia não conseguiram, ainda, destruir a alma nacional. Apesar do sensacionalismo e das inverdades, senão “meias-verdades”, veiculadas pelas redes sociais e pela televisão. Isso porque, apesar de tudo, o povo não é bobo.

O Brasil avançou e ampliou seus compromissos democráticos sem se tornar palco de divisões trágicas e irreversíveis. A justiça social não é apenas um imperativo constitucional. É um anseio transmitido de geração a geração. Ainda que exclusão social, preconceito, miséria e aviltamento da dignidade humana, legado triste e sombrio da escravidão, subsistam. Antíteses da alma nacional. Mas o país da “Casa grande e senzala” e dos “Sobrados e mocambos”, como ensinou Gilberto Freyre, soube realizar, de maneira incomum e singular na vida dos povos, amálgama de crenças e valores culturais. Dessa simbiose emergiu o brasileiro comum, consagrado pelo gênio inimitável de Câmara Cascudo.  Assim nasceu o culto da simplicidade, da solidariedade, da paz, da honestidade e da alegria de viver. É o brasileiro de Cascudo, Jorge Amado, Érico Veríssimo e Darcy Ribeiro.

Giuseppe Mazzini, um dos líderes da unificação da Itália, dizia que as crises são momentos em que as nações se encontram consigo mesmas. Nelas redescobrem seus ideais e revitalizam seus sonhos. Buscam no passado inspiração para vencê-las. Sobretudo no exemplo de vida daqueles que a honraram. A crise brasileira  não é suficiente para estiolar a confiança da nação em si mesma. O passado de uma nação é e sempre será fonte de inspiração do seu presente. As crises são momentos de parto, de dor, de perplexidade e de ansiedade. Também de júbilo e êxtase em desfechos nos quais a nação se encontra consigo mesma. Retomando sua marcha no tempo e na História. Uma das passagens mais evocativas, ilustrativas e elucidativas dessa catarse nacional, emerge do elogio fúnebre de Charles de Gaulle, proferido pelo genialidade de André Malraux. É uma reflexão insuperável e original sobre a grandeza, a honra, a eternidade e a fidelidade de uma nação. Seu título, por si mesmo, induz à contemplação da mistura das ações, da alma e dos ideais dos grandes homens com a nação: “Quando os carvalhos tombam”. O carvalho é uma arvore, no mínimo, centenária. Do mesmo modo que a sequóia, californiana, é milenar. Essa longevidade projeta seu sentido.

O Brasil também possui em sua História grandes homens, cuja vida pública enriqueceu, revigorou e enobreceu o espírito nacional. Esses exemplos, em circunstâncias de graves crises, são referências e roteiros para superá-las. Se há fatos, pessoas e eventos que, hoje, germinam vergonha, desalento e decepção, o legado de tantos outros, inclusive em passado recente, reanima a fé em nosso destino e em nossos ideais.

Um dos momentos mais dignos do Congresso Nacional se revelou no discurso de Tancredo Neves em homenagem póstuma a Juscelino Kubitschek de Oliveira. Eis um dos trechos mais expressivos e proféticos da oração: “As nacionalidades dependem muito de sua configuração física, dos acidentes incontroláveis de sua formação, dos entes telúricos que lhes vincam a índole e a vocação. Mas não há notícia na História de que nenhuma delas se haja transformado em nação poderosa, digna e culta, sem a presença de condutores clarividentes e proféticos, de guias seguros, íntegros e carismáticos, de líderes sábios e generosos”. Se o presente não fecunda exemplos dessa magnitude, certamente o passado é pródigo e fértil.

Nada devemos temer senão o próprio medo. A crise atual oferece à nação uma contrapartida e uma alternativa: o aperfeiçoamento institucional. Uma ampla revisão do nosso modelo político. Que não pode restringir-se ao processo político-eleitoral e ao sistema partidário. A nação reclama mecanismos capazes de realimentar, permanentemente, a legitimidade das instituições e dos seus agentes. Também revisão da duração de mandatos eletivos e a extinção do instituto da reeleição, incompatíveis com a nossa cultura política. A crise se revela, portanto, em seu aspecto legal, ético e moral. Mas também de eficácia. Há algum tempo suscitamos a questão. A ineficácia dos Poderes do Estado enfraquece, debilita e até inviabiliza a legitimidade e a ordem legal, alicerces da democracia representativa.

A honestidade de homens públicos, hoje questionada sob influência de fatos e episódios recentes, é um legado de gerações e gerações que construíram a nação. José Bonifácio, Padre Feijó, D. Pedro II, Prudente de Morais, Campos Salles, Ruy Barbosa, Getúlio Vargas, Café Filho, Milton Campos, Juscelino Kubitschek, San Thiago Dantas, Oswaldo Aranha, Carlos Lacerda, Afonso Arinos, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e Leonel Brizola são poucos entre tantos que primaram pela probidade e dignidade. Exercitaram a vida pública com o espírito de servir e promover o bem comum. Vidas a exaltar e honrar.

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