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A tricolor

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Marcelo Alves Dias de Souza 
Faz muitos anos, estudando em Cambridge, fui a Londres assistir a “Cats”, o musical. Encantado com a música de Andrew Lloyd Webber (1948-) e com os versos de T. S. Eliot (1888-1965), já na semana seguinte, fui assistir uma segunda vez, numa excursão da escola de línguas em que eu estudava. Lembro-me muito bem. 
Meu encantamento era como aquele narrado por Annette Y. Kirk, na edição que possuo de “A era de T. S. Eliot: a imaginação moral do século XX” (Realizações Editora, 2011), de Russell Kirk (1918-1994), “com a dança e a música dos felinos, bem como com a graça e a sagacidade de Resmungato, Velho Deuteronômio, Mister Mistfelino, Macário, o Gato Misterioso e todo o bando do Livro do Velho Gambá sobre Gatos Travessos”. Para mim, também, talvez o mais tocante do musical tenha sido “Grazibela cantando ‘Memories’, uma canção que nos desperta a atenção para o páthos da vida humana. Sua morte e ascensão expressam o profundo anseio pela vida eterna, tema sempre presente nos poemas, nas peças teatrais e na prosa eliotianos”. 
De 1939, musicados por Lloyd Webber em 1981, é provável que T. S. Eliot nunca tenha imaginado que, musicalizados, os seus “poemas sobre gatos fossem atingir um público muito maior que a soma de todas as pessoas que assistiram às suas peças” ou mesmo a soma dos que, durante a sua vida, “compraram seus livros”. Mas atingiram até este nordestino aqui. Em cheio.
O fato é que eu também me envolvi com uma colônia de gatos ao estilo “eliotiano”. Só que gatos de verdade, que observei e alimentei, todos os dias, encantado, durante mais de cinco meses desta pandemia. A colônia habita uma pracinha, ladeada de uma mata, quase em frente ao meu apartamento. Era minha respirada de ar, nos fins de tarde, nestes tempos tão difíceis.
Tinha a velha gata preta, mansíssima, que está ali há séculos. A gata branca e pintada, mãe de duas ninhadas, que foi adotada, junto com os filhotes pequeninos. Os dois jovens gatinhos irmãos, da primeira ninhada, quase idênticos, só diferenciados pelos focinhos branco e preto. A gatinha-irmã tricolor, a mais arisca e assanhada do bando, que suspeitei até estar grávida, em seguida dado cria, o que atrapalhou nossa programação de castrá-la. O gato branco velho, que vai e volta, e suponho ser o pai de todos os jovens. E, claro, tinha os gatos ocasionais: o frajola que tratamos da pata machucada, o rajado que comia embaixo, um amarelo furtivo, um branco do rabo escuro que só aparecia à noite e por aí vai. E eu me sentia o gato “Manda-Chuva” (o “Top Cat”), do velho desenho de Hanna-Barbera. Aliás, me sentia o Guarda Belo. Apesar das trapalhadas, no final, tudo dava mais ou menos certo na nossa colônia.
Até o dia em que a bela gatinha tricolor sumiu. Procuramos bastante. Até achamos, sem querer, o corpo de um outro gatinho, rajado, visitante ocasional do lugar. Encontramos o corpo da tricolor já bem deteriorado, num matinho, próximo a pista. Contam que ela foi atropelada. Deixou o seu lugar e o seu bando. Talvez uma escapada em busca de uma alimentação mais fina. Talvez a volta de uma namoradela. Quase como a Grazibela, glamourosa, na sua juventude. E foi colhida por um carro, como a Iracema do nosso Adoniran Barbosa (1910-1982). 
A gatinha tricolor não vai mais voltar para o seu bando, como fez a Grazibela de “Cats”, já velha e sarnenta, apenas uma lembrança dos tempos de gata jovem e glamourosa. Não vai cantar “Memory” para os seus companheiros de tribo, inclusive eu. Tenho certeza de que seria bem-vinda. E o seu desaparecimento definitivo, desbotando as tardes, me deixou muito triste.
A única coisa que me conforta é que a tricolor morreu como viveu. Arisca, assanhada, bela. Fazendo o que queria. E instantaneamente, suponho. Morreu dignamente, dizem alguns. É o que todos nós queremos um dia, gatos e humanos, acredito. E é a única coisa que me conforta.
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