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A viagem em torno dos livros

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Lívio Oliveira
Advogado público e escritor

Ainda me recordo daquela estante do meu pai. Acredito que não comportava mais do que quinhentos livros, mas eu a via como algo gigantesco; até um certo ponto, inalcançável. Era feita de alguma madeira nobre, pesada. De vez em quando, minha mãe passava um óleo de peroba, para dar brilho. A estante era alta e possuía algumas gavetas e divisórias, umas portinhas. Nas gavetas, ficavam uns documentos, certamente alguns carnês de pagamentos e demais comprovantes de pagamentos das contas do meu pai, sempre responsável e cuidadoso com o seu bom nome na praça. Na parte mais baixa da estante, umas pilhas de revistas, com destaque à “Realidade”, “Cruzeiro”, “Manchete”, dentre outras.

A rainha da pequena estante/biblioteca era a enciclopédia Barsa (os cuidados no manuseio eram redobrados). Lembro-me também de uma enciclopédia mais acessível às crianças e adolescentes: a Delta Júnior, com umas ilustrações interessantes e lúdicas. Era a minha preferida até quando cheguei à adolescência e fiz outras opções. Foi quando conheci os exemplares da coleção “Para Gostar de Ler”, os livros de Fernando Sabino (todo final de ano, Sabino lançava livro novo, com aquelas lombadas de cores diversas), a coleção completa de Graciliano Ramos, a de Érico Veríssimo, também completa, a obra de Manuel Bandeira, “Estrela da Vida Inteira”, um ou outro livro de Jorge Amado, inclusive um autografado: “A morte e a morte de Quincas Berro D’Água”, um livro de Castro Alves, “Espumas Flutuantes”, alguns de História do Brasil, a coleção “Nosso Século”, que também tinha uns pôsteres e uns discos anexados, etc etc etc.

Lembro que, num daqueles livros, vi fotos de Brigitte Bardot e Marilyn Monroe, imagens das quais não esqueço, aquelas loiras cheias de feitiço…meu coração de menino ficava cheio de sonhos. Também, em algum dos livros, li pela primeira vez sobre a vida de Jesus e os seus milagres. Acredito que num deles havia umas ilustrações de Gustave Doré. Sim, eram dele. Ainda me apavora aquela em que Jesus é tentado pelo demônio, que, de joelhos, com asas abertas e pontiagudas, apontava para algum lugar, como se fizesse um convite absolutamente temerário. E as tentações sempre nos dão medos e problemas. Às vezes, prazeres. As minhas têm sido, em boa parte, pelos livros: lê-los…escrevê-los…tê-los.

Pois bem, ali, em torno daqueles livros, vivi no primeiro dos mundos que escolhi para mim, um mundo autêntico e só meu, cultuando o pequeno acervo literário que o meu pai me permitia, com algumas ressalvas, invadir, sentindo-me dono. Hoje, já não há aquele pequeno mundo. Meu pai já não há. No entanto, continuo com o mesmo amor, talvez até maior, pelos livros. E vivo em meio às estantes, certamente mais recheadas de livros que aquela do Barro Vermelho. Guardo uma certeza, apesar de todas as mudanças e transformações que se deram ao longo desses tantos anos: foi naquele pequeno mundo de uma estante que nasceram quase todos os meus sonhos que ainda hoje acalento. E ainda hoje encontro fotos do meu pai e da sua estante. Nos meus livros. No meu mundo.

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