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A vida dá voltas sobre rodas

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Ramon Ribeiro
Repórter

O tiro acertou a coluna. Lesão nas vértebras lombares L1 e L2. Roberto Morais, o Beto, perdia assim os movimentos da cintura pra baixo. Ele tinha 18 anos na época. Sua vida de brigas, bebedeiras e pequenos furtos acabava ali. Os amigos foram sumindo aos poucos. Ninguém ia carregá-lo nas costas para ir às festas. Beto precisaria se reinventar. Ganhou sua primeira cadeira de rodas. Passou a dominar o equipamento. Aprendeu a jogar basquete, foi representar o RN num campeonato no Rio de Janeiro e antes da partida ele assiste pela primeira vez uma apresentação de dança. Em cena um bailarino cadeirante, movimentos circulares, sincronia entre homem e máquina. Incrível como a vida dá voltas. Beto é novamente atingido, em cheio, dessa vez pela arte. O corpo todo reage, aceita o tiro. Nascia naquele instante o Beto Morais artista, um talento único dos palcos brasileiros, co-fundador e bailarino de duas importantes companhias potiguares, a Roda Viva e o Gira Dança, ambas reconhecidas nacional e internacionalmente.

Vidas cruzadas: A pesquisadora Carolina Teixeira conheceu Beto Morais quando ambos integraram a companhia Roda Viva


Vidas cruzadas: A pesquisadora Carolina Teixeira conheceu Beto Morais quando ambos integraram a companhia Roda Viva

Aos 50 anos de idade e com mais de duas décadas de dedicação à dança, Beto tem pela primeira vez sua trajetória de vida e arte narrada em livro com o lançamento da biografia “Roberto Morais – uma vida de histórias”, da autora Carolina Teixeira. Além de traçar um perfil do artista desde sua juventude no Alecrim, quando fez parte de gangues, até os dias atuais, à frente do Gira Dança, a obra também faz um retrato da cena de dança contemporânea dos anos 90 e 2000 no Brasil. O livro será lançado na quarta-feira (14), a partir das 19h, no espaço Gira Dança (Ribeira).

Doutora em Artes Cênicas pela UFBA e performer, Carolina Teixeira conheceu Beto quando integrou a companhia Roda Viva. O grupo vigorou entre 1995 e 2004, tempo em que ela foi de bailarina à coreógrafa. “Pelo Roda Viva viajamos todo o país e excursionamos pelos Estados Unidos. Trabalhamos com grandes diretores, do popular e do erudito, como Carlinhos de Jesus, Domingos Montagner, Luis Arrieta, Henrique Rodovalho. Ajudamos a fundar grupos semelhantes em São Paulo, Belém e muita outras cidades. Em Belém, eu e Beto ficamos três meses para ajudar na criação do Roda Pará”, lembra Carolina, que desde os 9 anos vive sem o movimento completo do lado esquerdo do corpo. Ela é um caso raro de AVC na infância. “Fiz todo tipo de tratamento. Mas somente com a dança meu corpo mostrou evolução”.

Segundo a autora, Beto é testemunha e precursor de um movimento nacional de dança contemporânea em que a visão do corpo é ampliada com a entrada de bailarinos com deficiência nos elencos. “Esse movimento surgiu numa época que as companhias estavam produzindo supercorpos, como o que acontecia com a Cia Deborah Colker. Nesse cenário, a atuação de grupos como o Roda Viva foi fundamental porque mudou a visão do público quanto ao corpo”, comenta Carolina. “Natal teve um dos grupos pioneiros nessa perspectiva de dança. E o livro fala da importância desse movimento aqui na cidade, reunindo memórias da dança potiguar”.

Luz na acessibilidade
Beto conta que uma das coisas mais importantes do Roda Viva, era que a existência do grupo instigava debates sobre acessibilidade na cidade. “A gente convidava pessoas com deficiência, fazíamos um chamado para que elas saíssem de casa. É a pior coisa que pode acontecer para um cadeirante é ficar em casa, não enfrentar a rua. Ele se acomoda”, diz o bailarino.

Ele tem o hábito de ir para a sede do Gira Dança todos os dias de ônibus. Aprendeu na raça e desenvolveu macetes para chegar aonde precisa. Ele recorda que nos anos 90 a situação era muito mais difícil, a ponto do Roda Viva ter verba exclusiva para apanhar os bailarinos em casa. “Me adaptei a uma cidade não adaptada. Não foi fácil. Mas eu sabia que tinha que sair às ruas”, afirma. Já Carolina vê de forma mais incisiva os problemas da cidade quanto a acessibilidade. “Vivemos sob uma ditadura bípede. E isso afeta inclusive nossa visão das coisas. Pensamos mais verticalmente que horizontalmente”.

O livro narra também várias situação de preconceito. Mas em tom bem humorado, que é a maneira particular de Beto de lidar com os problemas. Seu humor beira o politicamente incorreto. Uma das piadinhas dele com Carolina é dizer que vão montar uma banda de rock. O nome está entre Aleijão Urbana e Paraplégicos do Sucesso. “Queremos um vocalista mudo. E um baterista sem braços”, se divertem.

Carolina comenta que a sociedade vê como tabu os deficientes. O que leva ao menosprezo, como se os deficientes fossem pessoas debilitadas, que precisam de ajuda o tempo todo. Nesse sentido, Beto conta lembra do Gira Dança, que sempre foi visto como um projeto de inclusão e não de arte. “Somos um grupo de dança contemporânea e ponto! Nos colocamos no palco como artistas, bailarinos, não como deficientes. Não temos os corpos de companhias como a da Débora Colker. Mas somos bailarinos”, afirma.

Beto é o diretor administrativo do Gira Dança. Ele está afastado dos palcos desde 2011, quando um problema grave nas pernas o levou a amputá-la. “O médico me deu duas opções. Amputar a perna ou morrer. Entre morrer com as duas pernas ou viver com uma, eu preferi viver com uma. E então me vi enfrentando outra situação barra. Olhei no espelho e disse pra mim mesmo: ‘Você vai superar mais essa, cara. Já difícil foi deixar de andar’”, recorda o bailarino. “Venho me tratando, recuperando os movimentos, fortalecendo o corpo. Em 2019 terei condições de voltar aos palcos. Ninguém tira isso de mim”.

Serviço
Lançamento do livro “Roberto

Morais – uma vida de histórias”, de Carolina Teixeira

Dia 14 de novembro, às 19h

Espaço Gira Dança (R. Frei Miguelinho, 100, Ribeira).

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