quarta-feira, 24 de abril, 2024
32.1 C
Natal
quarta-feira, 24 de abril, 2024

A viúva pródiga

- Publicidade -

Villas-Bôas Corrêa – Repórter político do JB

Qualquer que seja o resultado da eleição presidencial, com a vitória ou a derrota de Lula e até com o inesperado de um azarão disparado por fora na reta final, a reeleição será enterrada, em vala comum, amaldiçoada como praga que destruiu dois governos: o do segundo mandato do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e metade do primeiro do torneiro mecânico.

No caso sabido de FHC, os meses iniciais do seu governo deslizaram como o barquinho bossa nova em plácido mar azul. A mosca da mesma cor picou a vaidade e assanhou a ambição da turma palaciana e o governo desandou. As reformas dos compromissos de campanha que estavam sendo aprovadas pelo Congresso em articulações decentes, foram paralisadas pela onda suja de suspeições das compras de votos amazônicos para garantir o bis da precipitação.

Senadores e deputados aprenderam a lição oficial e, daí por diante, cada voto foi negociado na barraca da barganha. E se o restante do primeiro mandato perdeu o embalo e patinhou em embaraços, o segundo começou empestado pelas denúncias das trampas notórias, embora nunca provadas por documentos, como recibos de pagamentos registrados em cartório. As suspeitas e indícios de fantásticas tramóias na coceira das privatizações que desfalcaram o patrimônio nacional fizeram o resto.

Lula, pelo visto, não aprendeu os ensinamentos teóricos das leituras históricas da sua confessada paixão recente nem prestou atenção aos alertas da prática: o seu hipotético segundo mandato (que, de favas contadas, baixou às funduras de inviável e ganha fôlego com as últimas pesquisas) está sendo perdido de véspera, como peru de Natal.

Como o festejado comunicador bom de improviso gosta da ênfase, não custa fazer a sua vontade: nunca, na história deste país, um presidente-candidato mobilizou o governo, com tal desembaraço que passa pelo descaramento, como o que estamos assistindo na campanha ostensiva da reeleição.

Salta todos os limites do decoro e da compostura. Lula consegue desmentir o que está à vista com a facilidade com que esqueceu, durante três anos, as promessas de quatro campanhas.

A fase amarga da angústia com as denúncias do mensalão e do caixa 2, o maior escândalo de todos os tempos, expôs o governo na fragilidade dos seus erros, da omissão, da ineficiência, do aleijão do obeso ministério de 31 ministros e secretários atolado na inércia da desmoralização. As suspeitas bateram às portas do Palácio do Planalto, ao gabinete do presidente. O todo poderoso José Dirceu, chefe da Casa Civil e virtual presidente em exercício caiu na engrenagem das acusações e foi desossado. Sem mandato, vaga como sombra à procura de nada.

A linha de risco não foi ultrapassada. A CPI dos Bingos, de maioria oposicionista, promete prolongar os trabalhos até o fim da corda. Na CPI dos Correios, o relator, deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR) antecipou que incluirá o presidente Lula no seu relatório como negligente em relação ao escândalo que alega não ter visto nem sabido no seu trânsito palaciano.

Muitos aborrecimentos não foram removidos. O alento com a derrubada pela Câmara da barreira da verticalização, que escancara a porteira para as alianças estaduais e municipais entre partidos, liberados para lançar candidatos próprios a presidente, ajuda mas, não basta para limpar a barra.

No clima de vale-tudo para pavimentar a rota da reeleição nos quatro meses de pressa, antes da vigência das restrições legais que engessam o governo, Lula joga pesado. No ritmo frenético do desespero tenta fazer o que não fez em três anos. A agenda de viagens domésticas e internacionais garante palanque, microfone e assistência para as inaugurações simbólicas, como de trechos de estradas com buracos tapados no corre-corre da improvisação.

E a choradeira da herança maldita das dívidas impondo o sacrifício de severa economia virou pelo avesso da orgia da gastança. O ministro Antonio Palocci, da Fazenda, arriou a trouxa e abriu o cofre da viúva à farta distribuição de donativos eleitorais. Aumentos, reajustes de salários, de vencimentos, de aposentarias e pensões, sejam dos favoritos de sempre do Judiciário, do Legislativo e do Executivo chovem em todas as hortas, em generosidade nunca vista. Até os servidores públicos, tangidos à miséria em 11 anos de desumano e discriminatório esquecimento, vão receber o engambelo de um cala a boca de cerca de 10% das perdas com a inflação.

Na escalada do descaramento, o governo anuncia a realização de uma penca de concursos para mais de dez mil vagas no serviço público. E é para já, para as nomeações antes da quarentena da proibição constitucional.

Ou Lula recebeu um aviso do além de que sua reeleição está garantida pelos astros ou a leviandade arma o laço de um deplorável açodamento. Não é ético atropelar o eventual sucessor com fatos consumados. Certamente há várias áreas do serviço público com urgente necessidade de pessoal, como a Saúde, a Previdência Social e outras, de mazelas expostas nas filas da falência do governo. O mais, pode e deve esperar.

Lula inventa moda para tampar o rombo na promessa dos 10 milhões de empregos em quatro anos.

Murilo Melo – cem anos depois

Murilo Melo Filho – Das Academias Norte-Riograndense e Brasileira de Letras

Se vivo fosse, Murilo Melo, meu pai muito querido, teria comemorado, no último 22 de janeiro, o I Centenário do seu nascimento, completando 100 de idade, porque nascido em igual data do ano de 1906.

A primeira visão que tenho da vida foi a de vê-lo carregando-me nos braços a fim de encontrar um médico, que logo diagnosticou: “seu filho está simplesmente envenenado”.

Um sagüi mordera-me no dedo e eu amanhecera no dia seguinte com o corpo todo malhado por manchas roxas e uma hemorragia no canto da boca, pelo qual jorrou sangue, sem parar, durante 30 dias e 30 noites.

Salvou-me um médico, o Dr. Farkhatt, que, naquela época, ainda sem antibióticos, produziu uma vacina “ensinada por Deus”. Muitos anos depois, no Rio, reencontrei-me com ele, já velhinho, babando: acompanhava-me na televisão, abraçou-me emocionado e chorou copiosamente no meu ombro.

Uma semana depois, morreu. Dir-se-ia até que não queria morrer sem nos despedirmos e estava protelando o resto dos seus dias para passar a uma nova existência, mas deixando aqui outra vida, que ele, anos antes, havia salvado.

As visões da infância, em seguida, foram as da revolução comunista aqui em Natal, no ano de 1935, quando o Major Luis Júlio e o Tenente José Bezerra, que estavam com o Governador Rafael Fernandes no Teatro Carlos Gomes, foram bater em nossa casa, ali bem perto, na então Rua das Virgens e meu pai os escondeu numa casa próxima, desocupada. E eu, durante os quatro dias do domínio comunista na cidade, exerci uma função, depois chamada de “contra-revolucionária”, levando-lhes a comida numa marmita.

Como castigo e represália por esse asilo, um vizinho da frente denunciou-nos ao comando da revolução: o carro de meu pai, um Ford-28, de bigode, foi levado pelos revolucionários e só reapareceria quatro dias depois, quando a revolução já terminara.

Meu pai foi um pioneiro no bairro do Tirol, quando, em 1938, construiu uma casa na Rua Apodi, 558. Foi uma construção no peito e na raça, durante quatro meses, sem um engenheiro ou arquiteto, mas apenas com um mestre-de-obras e quatro operários. Ainda hoje, quase setenta anos depois, ela ali se encontra, de pé, sólida.

O Tirol era, naquele tempo, um imenso areal, com muito mato e muita cobra. Fomos seus primeiros habitantes, desbravadores, ao longo de todo aquele quarteirão, tendo à direita à Igreja de Santa Terezinha e à esquerda o Seminário de São Pedro.

Meu pai começou como telegrafista do Telégrafo Nacional, no mesmo ano e no mesmo emprego de Juscelino, dominando como ele o controle dos sistemas e mistérios da telegrafia do Morse e do Baudot, sendo depois radio-telegrafista da Condor Lufthansa e da FAB, como pioneiro na Base de Parnamirim.

Ali, a primeira coisa que se construiu foi a Estação-Rádio, de onde monitorava os vôos solitários do Brigadeiro Eduardo Gomes, comandante da 2ª Zona Aérea, sediada no Recife.

Estabeleceu-se então entre meu pai, na terra, e o Brigadeiro, no ar, uma enorme e confiante amizade. Nunca tiveram chance de um conhecimento pessoal e direto, mas, mesmo à distância, a admiração do telegrafista aqui em baixo pelo piloto lá em cima era tamanha que, mesmo sem ser político ou correligionário da UDN, – e sem a ninguém comunicar a razão daquele gesto – deu o nome de Eduardo ao seu último filho, nosso irmão mais moço.

Ele trabalhava muito em dois empregos, correndo de um para o outro e dormindo mal, de dia e de noite, sempre com aquele fone nos ouvidos. Precisava somar dois salários, para acudir às despesas de uma família com mulher e sete filhos, necessitados de tudo.

Nós o víamos tão pouco que nas nossas briguinhas de irmãos – Herilo, Hênio, Elma, Ilma, Ana Emília e Eduardo – nos ameaçávamos uns aos outros:

– Quando chegar domingo, nós vamos nos queixar ao papai.

Este é o retrato que, cem anos depois, ainda estou em condições de pintar: o retrato de Murilo elo, um homem de bem, honesto, probo e trabalhador, hoje homenageado numa rua de Natal.

Dele herdamos não apenas o nome, mas também um legado, uma lição e um exemplo de muita dignidade, correção e luta, que tanto buscamos honrar e à cuja memória somos extremamente gratos.

La Plaza de  Toros

Tomislav R. Femenick – www.tomislav.com.br

Ainda muito jovem e convalescendo de uma gripe, para passar o tempo ele pegou um livro na biblioteca de seu pai. Era “Tempo de viver”, uma coletânea de reportagens escrita por Ernest Hemingway. Como não era dado à leitura, ia passando por cima das matérias, lendo trechos de uma ou de outra, até que se deparou com uma intitulada “Tourada: uma tragédia”. Leu tudo, de cabo a rabo, e se empolgou. Em imaginação, transportou-se para a Plaza de Toro, de Madri. Viu a arena cheia de aficionados, as cores vivas das bandeiras, das roupas e da capa do matador, bem como as suas evoluções e piruetas; viu, também, a beleza das moças que estavam nos camarotes. Ouviu os toques dos clarins e os olés urrados pela multidão. Sentiu o cheiro do sangue que jorrava dos touros, quando esses eram picados ou quando eram mortos com uma espada enterrada nas costas. Então entendeu que a tourada era mais que um esporte – era  uma arte e uma tradição do povo espanhol. Resolveu que um dia assistiria uma tourada em Madri e ira ter em seus braços uma daquelas beldades madrilenas.

Desde que assumiu o seu primeiro emprego, poupava uma parte do seu salário para um dia ir a Espanha. Uma vez, quando o dinheiro estava quase completo, ficou desempregado por seis meses e gastou quase toda a sua reserva. Mas, tão logo consegui um novo emprego, voltou a economizar. Agora, já adulto, tinha dinheiro para realizar o seu sonho, aliás mais o que o necessário. Mesmo assim, comprou a passagem de avião a prestação. Conseguiu o visto e, quando menos esperava, estava hospedado no Hotel Florida Norte, localizado no Paseo de la Florida. Até que enfim estava em Madri, onde ia passar um mês inteirinho. Com muita antecedência, tinha feito a compra do ingresso para as touradas do dia seguinte, um domingo. Estava quase que em estase quando adentrou na Plaza de Toros de Las Ventas, a mais famosa das arenas da Espanha, onde, durante a temporada de espetáculos, todos os domingos são realizadas as Corridas de Toros. Tinha lido prospectos, artigos na Internet e tudo o mais e sabia que cada corrida correspondia a seis touradas. Portanto, ia assistir a seis espetáculos; ia ver seis atuações, de seis matadores.

Rufaram os tambores, tocaram os clarins e teve início o desfile dos toureiros, picadores cavaleiros e ajudantes. Depois, enfurecido, correndo e se mostrando altaneiro, entrou o primeiro touro na arena. Foi o princípio de um balé macabro, porém fascinante. O contraste do negro, brilhante de suor, do touro, com o vermelho, brilhante de apliques e lantejoulas das vestes do toureiro; da força bruta do animal, com a leveza e graça dos passos do artista; do silencio profundo que às vezes se fazia ouvir, partindo do coração da assistência, com os grito de olé, outras vezes saindo da garganta da arquibancada. Preparando o grande final, é a vez das evoluções dos cavaleiros e das acrobacias dos picadores. Agora o fim. O matador mata o primeiro touro do dia. Novamente o som dos clarins e os tambores se espalham pelo estádio, enquanto a carcaça do miúra e arrastada para fora da arena. O espetáculo se repete seguidamente. Somente são alterados os personagens. Um touro novo, um novo toureiro. Uns mais ou menos bravos, outros mais ou menos práticos, apresentando melhor ou pior performance.

Durante o espetáculo ele notou, perto dele, uma morena, com traços ciganos – talvez nem tanto, talvez pelo ambiente. Estava acompanhada de outras moças, mais ele deu um jeito de se aproximar e, num sofrível portunhol, encetou uma conversa mole qualquer e terminou convidando-a para jantar. Convite que foi aceito sem mais delongas, mediante o acordo de uma certa quantia em dinheiro, o que lhe daria direito a outros favores. Foram a uma casa noturna onde os artistas tocavam, cantavam e dançavam flamengo. Depois foram a uma outra, onde beberam, jantaram e dançaram. Disse que seu nome era Carmem, Maria Del Carmem Izabel Verônica y Solier. Era de Valencia, viera para Madri estudar mais nada dera certo e ela precisava viver e viver em Madri custa caro, por isso…

Foram para o apartamento dela. Fizeram amor, para ele um amor enlouquecido pelo álcool, pelo fato de estar em Madri, pela lembrança das cenas das touradas, que formava um calidoscópio ora nítido, ora embaçado. No outro dia, ao acordar, encontro um café simples e um pedido para que ele fosse embora logo, pois um cliente, com hora marcada, estava para chegar.

No hotel tomou um longo banho, deixando que a água quente do chuveiro escorresse pelo seu corpo. Estava com uma bruta ressaca. Deitou-se e dormiu o resto do dia e emendou com a noite. Na manhã seguinte, ao ligar a televisão do quarto, só para passar o tempo, se deparou com imagens de Maria Del Carmem Izabel Verônica y Solier, ou melhor, de Dolores Escobar, uma perigosa terrorista do ETA, sendo presa pela polícia. Antecipou sua volta ao Brasil para aquele mesmo dia.

Essa agonia de comunicar

Clotildes Tavares –  Escritora

Estou com preguiça, meu caro leitor. Nesta hora em que me sento aqui, enfrentando o enorme desafio de um arquivo novo aberto na minha frente na tela do computador, este retângulo branco e intimidador, sempre à espera de que eu lance nele palavras de reflexão, ou informativas, ou engraçadas, ou poéticas, me dá uma preguiça danada de escrever. Fico meio morta de inveja do grande Gabriel García Márquez, este escritor portentoso, prêmio Nobel de Literatura, autor de um dos maiores romances já escritos que é o “Cem Anos de Solidão”. Pois o grande Gabo, nesta semana, simplesmente comunicou ao mundo que não tem planos de escrever nada, “pelo menos por enquanto”. Diz ele que pode até escrever algo, que é fácil, que não tem dificuldade: mas não quer. Diz que não está preparando nada, não tem nenhum plano de livro… O que ele vai fazer no lugar das seis horas diárias que dedicava ao ato de escrever ele não diz; mas assegura que não vai se dedicar a “nenhuma atividade inútil”.

Já eu não, caro leitor. Anseio pela inutilidade. Anseio pelo tempo mal empregado. Anseio por jogar minha vida fora, por não me importar com nada, por me libertar da responsabilidade e da mania de me comunicar de falar, de escrever, de telefonar, de opinar, de me colocar, de protestar, de estar o tempo todo tomando conta do mundo, como se ele não pudesse andar sozinho.

Anseio por me deitar na rede branca e deixar o mundo e as pessoas entregues à sua própria sorte. Anseio por assistir divertida ao Jornal Nacional sem dar a mínima para o presidente e seus ministros e para os políticos, corruptos ou não. Anseio por ignorar o que dizem as celebridades instantâneas fabricadas pela TV e que de repente passam a ditar moda e formas de comportamento. Anseio pela liberdade de não ler nenhum dos livros que tenho, comprados ou enviados por amigos, e que ainda não tive tempo sequer de abrir. Anseio por mandar às favas a história da minha família que comecei a escrever, e por parar de escanear as caixas e mais caixas de fotografias antigas que se empilham ao lado do computador.

Anseio pela rede e seu balanço preguiçoso, e pelos filmes da sessão da tarde que esquecemos assim que eles acabam. Anseio pela perambulação quase sonâmbula pelos corredores do shopping, olhando vitrines, sem comprar nada, inutilmente, somente olhando. Anseio, finalmente, por pedir um cafezinho e ficar olhando ele esfriar, só de mal, só de preguiça, sem coragem sequer para tomá-lo.

Mas quem disse que eu faço isso? Quem disse que eu agüento? O matador mata o primeiro touro do dia. Novamente o som dos clarins e os tambores se espalham pelo estádio, enquanto a carcaça do miúra e arrastada para fora da arena, fazendo versos, rascunhando peças de teatro, letras de músicas, compondo e-mails, defendendo idéias, levantando questões. Essa agonia comunicativa com a qual nasci, e que os astrólogos dizem se dever a uma conjunção entre Júpiter, Mercúrio e o Sol, todos em Sagitário na minha Casa XI, é o principal motor da minha vida. E mesmo que uma parte minha morra de preguiça e anseie pelo sossego, o ócio e a inutilidade, o instinto e a natureza são mais fortes e, enquanto vida eu tiver, aqui estarei, teclando furiosamente e metendo o bedelho onde sou e onde não sou chamada. Esta é a minha vida, esta é a minha história e nada que eu possa fazer vai mudar isso. Então, não me queiram mal, e tenham paciência comigo.

 

- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas