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Acordos sociais

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Erick Wilson Pereira
Professor de Direito da UFRN

As democracias, até mesmo as consideradas maduras, não são imunes a abalos e imprevistos. Mas muito há que ser feito para transfigurar um sistema democrático em um ditatorial. No entanto, esse parece ser o medo maior que ora alimenta a polarização do nosso eleitorado no segundo turno destas eleições. Afinal, a unanimidade democrática é declarada no mundo inteiro, por todos os povos e governos. Poucos se dão conta que as democracias são múltiplas, existem para todos os gostos e submetem seus valores – essencialmente, liberdade e igualdade – às diferentes visões de mundo. Convém lembrar que há democracias liberais e sociais, mas também há democracias marxistas que reduzem a liberdade do indivíduo à participação na luta pelo poder do proletariado.  

A democracia social que inspira a democracia representativa brasileira defende a coexistência da liberdade-autonomia com a liberdade-participação, da isonomia com a igualdade de oportunidades. Seus pressupostos sociais e econômicos abraçam o pleno usufruto das liberdade públicas e de informação ampla e neutra pela população, além de um processo eleitoral íntegro que espelhe a vontade do eleitorado. Tudo sob o guarda-chuva da Constituição cidadã, 30 anos recém-completados, maior protagonista do nosso processo de redemocratização, marco da passagem da democracia representativa para a democracia participativa, quando rompemos com o regime autoritário e viabilizamos o reconhecimento dos direitos subjetivos passíveis de serem judicialmente perquiridos.

De modo geral, as constituições são feitas para perdurar e ser a ordem jurídica fundamental e a fonte de sua validade. Mas, como de resto toda Constituição, a nossa também sofre influência do tempo, do espaço e da ordem política, sujeitando-se à realidade sociocultural a despeito dos limites hermenêuticos impostos pelo ordenamento. Não deveria surpreender, portanto, que vez por outra indivíduos ou grupos, bem-intencionados ou não, fiquem tentados a imprimir suas marcas ideológicas ou pragmáticas no texto constitucional.   

Apesar dos problemas e da profusão de temas que abriga, a atual Constituição do Brasil é a mais estável na história do país, de modo que é ilógica ou desarrazoada qualquer proposta de se elaborar novo texto constitucional, como inicialmente chegaram a propor – e amedrontar o eleitorado – as campanhas dos candidatos do PT e PSL. Qualquer tentativa implicaria instabilidade para o sistema, pois seria difícil evitar uma enxurrada de emendas, por mais restritas as alterações que os constituintes pretendessem introduzir. Como ponderou o ministro Gilmar Mendes, a Carta “evitou golpes, não ensejou tentativa de tomada de poder, e por isso tem valor em si mesmo, um valor intrínseco que tem que ser cultuado”.

Os resultados das eleições proporcionais demonstraram claramente que a democracia não está em risco. A Lava Jato propiciou o surgimento de novos políticos – empresários, militares, magistrados -, mas a maior taxa de renovação do Congresso de toda a história também decorreu de outros fatores, a exemplo do fim do financiamento de campanha por empresas. Velhas engrenagens da velha política, ainda que parcialmente, foram rejeitadas por um eleitorado com mais autonomia e consciência acerca das nossas brutais carências de serviços e políticas públicas; estruturas oligárquicas deram passagem para jovens promissores comprometidos com causas progressistas, direitos humanos e valores éticos na política; as redes sociais, apesar das inevitáveis fake news, amplificaram e democratizaram informações para a maior parte da população; partidos encolheram e políticos tradicionais não foram reeleitos, alguns desgastados pelas denúncias de corrupção ou pela postura dúbia no jogo político. Em suma, uma onda progressista se elevou a par da onda conservadora.

Com relação ao segundo turno da eleição presidencial, observa-se que há uma crescente polarização em prejuízo do debate argumentativo e crítico; valores ultraconservadores e ideias hostis às minorias se opõem às políticas inclusivas e ideologias ainda não convencionais; riscos de retrocesso político e social contrastam com os danos recentes ao país promovidos por um projeto de poder que destruiu uma polarização autêntica capaz de mobilizar o sistema político e diminuir o fosso entre o eleitor e o Legislativo. Entre índices estratosféricos de rejeição dos dois candidatos, a verdade e a compreensão são imoladas no altar dos discursos omissos e do ressentimento.

Ainda assim, a despeito do cenário adverso e independentemente do resultado da eleição, penso que as instituições do país sairão fortalecidas da crise. A democracia é sistema cheio de imperfeições pois nem sempre a vontade popular produz bons resultados. Os povos amadurecem mediante a assimilação de eventuais retrocessos e ameaças, frutos das próprias escolhas, contanto que as regras democráticas em causa sejam respeitadas. A experiência progressiva legitimada pelos acordos sociais sempre habilita o melhor exercício da cidadania e do autogoverno.

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