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Afeto que se encerra

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Nei Leandro de CastroEscritor

Quem escreve em jornal, além de uma bela remuneração (não é, caríssimo colega Paulo Coelho?), goza de outros prazeres. Por exemplo: os e-mails que abarrotam o arquivo do computador, a maioria fazendo hidromassagem no ego dilatado do escriba.  Hoje faço uma seleção dessas mensagens, que já chegam a oitenta e uma, ou seja, três vezes mais do que o número dos leitores de dois cronistas famosos. Vamos lá:

De O.P.M. – “Com a devida vênia, quero discrepar, com a veemência que se faz mister, da forma deveras vilipendiosa com que V.Sª. se referiu ao notável beletrista Marcel Proust e ao não menos insigne poeta e prosador potiguar Alex Nascimento. Suas elucubrações mentais provêm de um raciocínio deformado por uma lúgubre maledicência, segundo a qual torna-se óbvio que V.Sª. é um homófobo empedernido. Dir-se-ia que estamos, inequivocamente, diante de homúnculo corroído pelo desgosto diante do bem de outrem. As suas diatribes, secreções peçonhentas, são, outrossim, frutos de uma deformação moral e religiosa. Poder-se-ia argüir: seriam idiossincrasias as observações abaixo subscritas? Peremptoriamente, não, pois sou, com o resguardo da modéstia, um ser devotado ao direito e à fé. Resta-me aduzir: ‘Hoc erat in votis’, como já o disse um conspícuo e vetusto romano.” 

De M.C. – “Você leu mal o livro de Danuza Leão. Fez ficção em cima de uma obra séria, bem escrita, como naquele encontro da autora, no final do livro, com um octogenário. Está enciumado, nego? Talvez sim. Não satisfeito, você estendeu o seu ciúme para Renato Machado, um dos mais brilhantes intelectuais do país. Seja assim não, rapaz. Se estiver triste, sentindo-se desamado, venha para a Toca amiga, em Extremoz. Acabei de contratar um churrasqueiro ítalo-palestino, Habib Piovani, que toma conta das carnes como Danuza tomava conta dos seus namorados. Uma delícia! Você precisa provar da picanha do Habib – é uma coisa de louco!  A casa está a sua espera. Venha sem ciúmes e sem mágoas, tá bem?”

De A.G. – “Meu caro, o Beco da Lama está cheio de mercadorias novas e muitas meladinhas. Leo Sodré lamentou não ter participado da discussão em torno de Proust e Alex Nascimento. E aguarda um novo bate-boca de alto nível para contar uns podres sobre esses dois escritores imortais.  A Papangu continua arrasando. E o articulista Escolástico, sempre de bom humor, já prepara uma expedição punitiva para o caso de você voltar a falar mal da revista. Espero que isso não aconteça. Apareça no próximo sábado. Já são oito os bequianos que sabem de cor o nome completo de Picasso.”

De A.P. – “ Se eu não fosse mãe de quatro filhos, avó de três netos, e não gostasse tanto do meu falecido esposo, eu queria ser sua namorada. Adoro quando você escreve sobre Natal do nosso tempo, a paz angelical das ruas, aquelas moçoilas que não permitiam assanhamentos e abusos. Segurar na mão com uma semana de namoro? Jamais. Esses beijos de cinema? Nunca. Só lamento não ter tomado banho no Potengi na sua companhia, me refugiando nos seus braços quando sentisse medo dos cações. Ah, meu caro senhor articulista, eu desconfio que começo a trair a memória do meu amado esposo. Será que estou caindo em pecado mortal?”

Anti-elegia para uma cidade

Carmen VasconcelosPoeta

“Mas minha terra é a terra que é minha.
E sempre será minha terra. Tem a lua,
tem estrelas e sempre terá.”
Renato Russo

Minha terra me pariu como quem expulsa de si um corpo estranho. Não nasci, fui deslocada. Ah, talvez eu cantasse mais ameno, se tivesse vindo de uma terra colorida e cheia de enfeites e afagos, mas não vim. Nem vim da pureza dos eternos gelos, nem da cortesia dos rios navegáveis. Eu não vim das colinas verdejantes, dos vales da fertilidade. Não vim das ternuras do mar, não tenho tanta imensidão. Nem pertenço aos pântanos, nem às brumas, não vim das terras que geram coisas maleáveis.

Não, o meu chão é duro, como uma sina. Na terra onde nasci ardem solidões sem trégua, a perder de vista, e sequidões estalam gravetos mais fortes do que troncos. Também em mim certos motivos causam estalidos.

Aí, escrevo, assim, por estalos. Por repentes, escrevo, imediata, profética, e as coisas que escrevo forma não têm.

Vivendo ou escrevendo, nunca tive forma, estilo, enquadramento. Deslocada que sou, eu me sou até sem mim. Quisera talvez ser solene, presente, inadiável. Quisera ser previsível, disponível, mas o que me toma são vontades baldias, vontades ronceiras de um não sei que colhi da terra enferma de mormaços que é a minha.

A terra de onde vim me deu um nome de árvore – angico – e um destino de árvore: fincar raízes em ausências, em quereres esboroados. Talvez eu quisera ter vindo macia, talvez eu me quisera ofertar com a meiguice das águas, mas o meu destino de árvore me fez arisca, esboçou-me no vento, incontornável como galhos balançantes e cair de folhas.

Posso não querer dizer, por pudor de dríade, mas ainda sou a mulher que se veste de árvore, que habita os angicos no meio do vento. Pode-se sair de um lugar, mas de um destino não se pode sair. A vida é o fruto da videira? A vida é o fruto do angico. E o único ritual que cumpro por amor, embora amor às avessas, é o ritual de ser árvore: dar-me ao vento e à chuva que me fragmentam e me renovam. Dar-me à tempestade que me revela a nudez. Dar-me aos pássaros, que de mim se alimentam e em mim fazem ninho.

Da árvore brotou a cidade, onde se alastram pedras ardentes e pessoas despropositadas. Também sou a despropósito, movida a “redemunhos”.

Da árvore brotou a cidade e suas ruas são galhos e suas casas são folhas. Da cidade guardo as delicadezas pontiagudas que me ferem e as espécies de medo que me acossam. A minha Angicos é a morada de tudo o que, sendo feito de mim, ainda me causa espanto. Mas espantos me apascentam. E só assombros me podem apaziguar.

Queria inventar palavras que te defendessem de mim, terra. Invento alumbramentos, essas coisas abertas, que não ofertam proteção. Porém, mesmo estranhando a minha terra como ela sempre me estranhou, aceito com gosto a sina de Deus: virar estátua de sal, não porque para lá tenha voltado os olhos, mas porque de lá nunca tirei o coração. 

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