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Ainda (e sempre) em torno dos livros

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Lívio Oliveira
advogado público e escritor/[email protected]

Recordo-me, ainda, daquela estante do meu pai. Acredito que não comportava mais do que uns quinhentos livros, mas eu a via como algo gigantesco. Até certo ponto, dado que eu ainda era um imberbe pequenino, os livros eram inalcançáveis. O móvel que os comportava era feito de alguma madeira nobre, pesada. De vez em quando, minha mãe passava um óleo de peroba, para dar brilho e fazer um agrado ao meu pai. A estante era alta e possuía algumas gavetas e divisórias, umas portinhas. Nas gavetas, ficavam uns documentos, certamente alguns carnês e demais comprovantes de pagamentos das contas da casa, vez que o meu velho era sempre responsável, organizado e zeloso do bom nome na praça. Na parte mais baixa da estante, umas pilhas de revistas, com destaque à “Realidade”, “Cruzeiro”, “Manchete”, dentre outras.

A rainha da pequena estante/biblioteca era a enciclopédia Barsa (os cuidados no manuseio eram redobrados). Lembro-me também de uma enciclopédia mais acessível às crianças e adolescentes: a Delta Júnior, com umas ilustrações interessantes e lúdicas, que um certo primo gostava de recortar escondido (que delito!). Era a minha preferida, até quando cheguei à adolescência e fiz outras opções. Foi quando conheci os exemplares da coleção “Para Gostar de Ler” e os livros de Fernando Sabino (todo final de ano, quase um Roberto Carlos das Letras, Sabino lançava livro novo, com aquelas lombadas de cores diversas e vivas).

Também lá, na estante, ficava a coleção completa de Graciliano Ramos, a de Érico Veríssimo, também completinha, a obra de Manuel Bandeira (que beleza a “Estrela da Vida Inteira”!!!), um ou outro livro de Jorge Amado, inclusive um autografado: “A morte e a morte de Quincas Berro D’Água”. E um livro de Castro Alves: “Espumas Flutuantes”, alguns de História do Brasil, a coleção “Nosso Século”, que também tinha uns pôsteres e uns discos anexados, e mais um bocado de coisas boas.

Num daqueles livros vi fotos de Brigitte Bardot e Marilyn Monroe, imagens das quais não esqueço…aquelas loiras cheias de feitiço…meu coração de menino ficava entupido de sonhos. Capítulo à parte!

Em algum dos livros, li pela primeira vez sobre a vida de Jesus e os seus milagres. Acredito que num deles havia umas ilustrações de Gustave Doré. Sim, eram dele. Ainda me apavora aquela em que Jesus era tentado pelo demônio, que, de joelhos, com asas abertas e pontiagudas, apontava para algum lugar, como se fizesse um convite temerário. E as tentações sempre nos dão medos e problemas. Às vezes, prazeres. As minhas têm sido, em boa parte, pelos livros: lê-los…escrevê-los…tê-los…mantê-los.

Pois bem, ali em torno daqueles livros vivi no primeiro dos mundos que escolhi para mim, um mundo autêntico e só meu, silencioso e solitário, cultivando o pequeno acervo literário que o meu pai me permitia, com algumas ressalvas, invadir. Sentia-me dono.

Hoje, olhando ao redor, vejo que já não há aquele pequeno mundo. Meu pai, dono daquela fazendinha de papel, já não há. No entanto, continuo com o mesmo amor, talvez até maior, pelos livros. E vivo em meio às estantes de todos os tamanhos e formas, na Academia de Letras, no Instituto Histórico, no lugar de trabalho, no apartamento, certamente com mais acesso aos livros do que havia naquele endereço antigo do Barro Vermelho. E buscando mais, por todo canto, em todas as viagens.

Guardo uma certeza, apesar de todas as mudanças e transformações que se deram ao longo desses meus cinquenta anos de vida: foi naquele pequeno mundo, diante de uma estante de madeira, que nasceram quase todos os meus sonhos, os quais ainda hoje acalento. E ainda encontro fotos do meu pai e da sua estante. Estão nos meus livros, na mente e no coração, estão no meu mundo – pequeno ou grande mundo.

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