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Alvas areias do Potengi

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Clotilde TavaresEscritora

Escarafunchando jornais velhos nos arquivos da Fundação Casa de José Américo, em João Pessoa, que funciona no palacete onde residiu o escritor em Cabo Branco, encontrei a coleção do Correio das Artes, desde o primeiro número. O Correio das Artes, suplemento cultural semanal do jornal A União, teve seu primeiro número lançado em 25 de março de 1949, e é o mais antigo suplemento literário em circulação do Brasil. Os arquivos da Fundação guardam documentos e jornais preciosos para a história da região, muito bem cuidados e catalogados por funcionários apaixonados pelo que fazem, com especial louvor para Hilda, Porcina e Ivone, e um elogio extra para o presidente da entidade, o advogado e escritor Flávio Sátiro Filho, à frente de tudo, atento e batalhador.

Pois lendo os primeiros números do Correio das Artes encontrei muitos artigos de escritores do Rio Grande do Norte, que colaboravam regularmente com o semanário. Entre eles, registro Lenine Pinto, Jaime Hipólito Dantas, Nilo Pereira, Antônio Bento, Américo de Oliveira Costa e Câmara Cascudo. O suplemento tem 16 páginas e nos quarenta primeiros números que consultei, que abrangem o período do lançamento em 25/03 até o dia 25/12/1949, tais autores comparecem com um ou dois artigos, sobre temas variados, entre ficção e crítica literária. Um destaque especial fica para a colaboração de Veríssimo de Melo, com participação regular.

Lá encontrei, de autoria do nosso saudoso folclorista, os artigos "Dois Jogos Infantis" (nº 10, 29/05/1949), sobre brincadeiras como a "academia" e o "caracol"; "Antroponímia Cearense" (nº 31, de 23/10/1949), no qual comenta a mania que as pessoas têm de colocar nos filmes nomes arrevesados e em língua estrangeira; "Notas Soltas", que contém apontamentos sobre "amor de viúva", e "olho de boto"(nº 14, de 26/06/1949). Além desses, classificados no campo do folclore, publica também dois artigos de crítica literária. O primeiro, publicado em 07/08/1949, no nº 20, "Impressão de um poeta", comenta a poesia de Antonio Pinto de Medeiros; e o outro, "O Deserto e os Números", analisa o livro de poemas de Edson Régis (nº 35, 20/11/1949).

O escritor Calos Romero, hoje membro atuante da Academia Paraibana de Letras e àquela época colunista do Correio das Artes divulga as plaquetes de Veríssimo por ele recebidas e não poupa elogios ao nosso "Vivi", em vários números do suplemento.

O mais gostoso, porém, é um artigo escrito por Veríssimo narrando um passeio que fez por Natal com o escritor José Mauro de Vasconcelos, publicado no nº 7, de 08/05/1949. Depois de visitar Cascudo, desceram até a Ribeira, e Vasconcelos quis ir à rua Chile, "… rever a velha rua da sua infância e espiar as barcaças, batelões e navios…" depois, desceram até as Rocas e, caminhando pela beira do Potengi, contemplaram os restos de um "Judas", pois era sábado de Aleluia. O boneco, recém-sacrificado, "…espedaçado sobre a areia alva do rio, parecendo os restos de um náufrago, com a marola quase tocando nele…" deixou os dois profundamente impressionados. Ao largo, outros corpos de Judas boiando, trucidados, atirados ao desprezo.

O passeio terminou com ambos numa sorveteria, contando ao desenhista Aguinaldo Muniz o encontro com os cadáveres de pano, estraçalhados sobre as águas. Mas Aguinaldo "… não quis acreditar. Para ele, tudo não passara da imaginação fértil de José Mauro de Vasconcelos."

Uma página do passado, de um tempo em que as barcaças e batelões podiam ser vistas na rua Chile, o Potengi ostentava areias alvas e os cadáveres que boiavam nas águas eram apenas bonecos de pano, trucidados pela alegria do povo.

A palavra de Dorian Jorge Freire (II)

* Extraído do diário de Dorian Jorge Freire

Que importam os dias e as horas, se a única verdade é a rapidez do momento que corre? Se a vida é breve e a morte é certa, por que emporcalhar a vida e construir, aos pedaços, a morte-morte ao invés da morte-vida? Por que mal representar os papéis e descumprir as tarefas essenciais? O amor poderia unificar o tempo, mas preferimos que degrade o mundo e assassine, em cada um de nós, o espírito da infância. A jornada que poderia ser de retificações se transforma em pesadelo e deste haveremos de sair para a morte absoluta. Se coexistem no homem, como queria Pascal, os princípios da grandeza e da miséria, por que cavar unicamente no último, que sabemos terra daninha? Sei que não há impossível para Deus, mas que milagre ele obrará para encontrar água no meu abismo?

Quantas vezes tenho acreditado, me enchido de esperanças, de ilusões? Quantas vezes tenho esperado contra toda a esperança? Mas não me arrependo, juro. Nunca me arrependi. Fico, às vezes, morrendo de vergonha. Escondendo até dos mais próximos, até dos mais íntimos, a decepção. Quando o fiasco se torna ostensivo, quando se torna irrecusável, faço cara de quem nunca de fato acreditou na coisa. Cara falsa de superioridade. Que me importa! Os homens são assim! Eu já esperava! Não tinha ilusões!

Mentira, tudo mentira. Importa, esperava, tinha. Que a minha capacidade de crer nos outros chega a ser escandalosa. A pessoa faz uma, faz duas, faz dez e eu não me conserto. Continuo o bestalhão de sempre.

“Dá nisso acreditar nos homens". “Vá acreditar nos homens".

Muitas vezes ouvi isso de Berilo Wanderley. Ele não acredita. Diz que não acredita. Tendo uma sensibilidade tão grande, um coração autêntico de poeta, sendo uma figura humana que enriquece Natal, criou uma crosta e se esconde atrás dela. Desconfia antes, durante e depois, como o filósofo cético.

Não posso ser assim. O que seria de mim, de meus dias e de minhas horas, não acreditasse? Poderia viver? A morte se instala em nós, de mala e cuia, quando começamos a perder as esperanças. Podemos até estar vendendo saúde, a saúde escapando pelos poros. Mas já estaremos marcados pela morte. A sua consumação passará a ser, somente, um evento biológico. E nada mais. O que faz a vida, o que sustenta a vida, o que impulsiona todos nós, para frente mesmo quando empurrados, sem dó nem piedade, para trás, é a esperança.O olhar estendido para o amanhã. A perspectiva do futuro. Nem que seja do porvir mais distante, do qual não vemos sequer fumaça. Do contrário, eu morreria no túnel. Sufocado. Asfixiado. Mas faço força, avanço, me disponho a caminhar, mesmo entre quedas, pela esperança de que, mais ali, estará a saída. E com ela a luz, o sol, o calor, a humanidade.

Acho que não obro burrice. Deus também esta lição transmitiu a nós, por intermédio de Jesus. Quantas vezes perdoar? Sete vezes setenta e sete. E Deus sabe, como ninguém, que o absolvido de hoje é o pecador de logo mais. E, mesmo assim, perdoa. E ainda desafia o que não carrega maldade a jogar a primeira pedra. Como no caso da adúltera.

Eu vou mais longe, na maioria das vezes. Não fico preso só na rede das esperanças. Fico entusiasmado. Aliás, uma coisa eu digo como repito: sem entusiasmo não levanto uma palha. Não tenho sustança para erguer uma pena. Quando me vêem fazendo e acontecendo, largando brasa, é que estou movido por um entusiasmo enorme. E isso acontece diante de tudo. De trabalho e de leitura, principalmente. É até possível, acho mesmo que é mais que provável, que tudo termine em água de barrela. E daí? De tudo o que terá restado é o saldo de entusiasmo, de fé. Nem tudo, então, terá sido perdido. E é um entusiasmo de sopetão, do é para já, do é para logo. Que odeio os planos para o futuro distante, os cálculos remotos, os programas para daqui a três ou quatro dias. O que tem de ser feito…

Minha Mãe ria. Eu chegava em casa, depois das 11 da noite, e ficava conversando com ela, no quarto, assunto puxa assunto. Lá para tantas, ela dizia: preciso arrumar este quarto, limpar o guarda-roupa, fazer algumas mudanças de lugares, a cômoda ali, o armário aqui, a cama acolá. Não havia terminado o assunto e eu já estava desarrumando coisas, puxando móveis, mobilizando gente dorminhoca, desinfetando lugares, jogando água fervente sobre baratas. Se me detinha e adiava a coisa para depois – "não, por Deus, deixe para sábado" -, eu desconversava e não me animava mais. Que no sábado o assunto voltasse. E não agora, com antecedência.

Mas por que essas lembranças e esses devaneios? Porque o sentido de pecado passou perto e me deixou mancha. Ontem e hoje. Sempre. O mesmo pecado, a mesma ausência de originalidade, a inclinação sem remédio. Deveria estar junto de todos os que pecam. Deveria ter procurado o padre. Para mostrar que não me omito e que não sou de outro pano. Para provar que o melhor mesmo foi ter ficado sozinho com o meu problema e sentido, na solidão, que na verdade não podemos contar senão com Deus. E que Deus, muitas vezes, fica distante, afasta as consolações e até mesmo se afasta, para que sintamos a necessidade dele e compreendamos que sem ele somos a carência sem limites nem fim.

Agora, sentado nesta cadeira que foi de meu Pai, os olhos cerrados, as mãos abraçadas, eu entendo como, no essencial, estamos sós. Não assumimos a dor alheia, não lhe emprestamos o valor devido. Subestimamos a dor que não nos dói. Quando não nos rejubilamos com ela, no íntimo da nossa miséria. É como se fôssemos inimigos uns dos outros. Ou desconhecidos, indiferentes. Como se estivéssemos cada qual na sua ilha, além da sorte dos demais. Mas nenhum homem é uma ilha. Todos estamos vinculados, sócios num mesmo drama. O problema alheio repercutido em nós de forma consciente ou inconsciente. Moldando o mundo, fornecendo o seu clima. "Amai-vos uns aos outros". Desprendemos o amor espontâneo, o amor que em nós distingue os seres de privilégio, filhos de um Deus único, donos de uma destinação especial e eterna. O mundo se estreita. A comunicabilidade desaparece, na proporção em que nos transformamos em sítios isolados, ou aproximados apenas por interesses próprios, pessoais, tribais.

Se não há gratuidade na vida, se tudo está composto nos limites da Providência, encontrarei, em qualquer parte, a Vontade na minha vontade. Li, algures, que a obra de Deus tem duas faces. Uma para nós e outra para o seu olhar. Ou para o olhar daqueles que já concluíram a grande caminhada. É como um bordado – exemplificam. Vemos o lado avesso e não há nele coerência, estética, unidade. Os outros vêem a outra face, onde tudo é lógica, justeza, arremate exato, harmonia de cores e modalidades. O que Deus quer? O que deseja e espera de cada um de nós, desde a eternidade?

Lembro minha Mãe, que um dia me disse sem nenhum rodeio:

– Esse seu coração grande ainda vai sofrer muito.

Tropeços na coerência

Villas-Bôas CorrêaRepórter político do JB

Esgotada a badalação do programa comemorativo do 26° aniversário do PT – com o jantar para a arrecadação de fundos para cobrir os rombos na caixa petista deixados pela antiga direção, caída em desgraça com o escândalo em dose dupla do mensalão e do caixa 2 e superado os constrangimentos com ausências de excluídos ilustres, como o ex-dono da legenda e do governo, o companheiro José Dirceu e o sumido ex-presidente José Genoino, que desapareceu sem deixar endereço – sobra na coluna dos saldos a iluminada reação do presidente-candidato Lula da Silva, no salto do esfuziante e justo otimismo para o pouso na prudência do bom senso.

Ressalve-se que é perfeitamente justa e compreensível a euforia do candidato com os índices de recuperação da última e polêmica pesquisa, que o alçou ao favoritismo com 10 pontos percentuais de vantagem sobre o prefeito tucano de São Paulo e seu principal adversário potencial, José Serra na simulação do mano a mano do segundo turno. E um punhado de números que dançam o arrasta-pé do alívio lulista e esquentam a cuca da oposição, embaraçada na escolha do candidato entre o prefeito José Serra e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.

Não se sabe quanto tempo vai durar a conversão do candidato ao recato do comedimento. Mas, a trava no oba-oba forçado do fandango petista, mais para réquiem do que para marchinha de véspera do carnaval, é um dado novo a ser avaliado nos próximos lances da pré-campanha. Lula advertiu para o risco do salto alto e do esbanjamento na euforia pelos companheiros excitados com a perspectiva de vitória antes do início oficial de campanha e da prova de fogo do horário de propaganda eleitoral em rede de emissoras de rádio e de TV.

E foi além ao anunciar a linha de moderação, embrulhada em esperteza dos próximos meses, até junho, em que a frouxidão da lei tolera que o ocupante de cargo executivo, candidato notório mas não declarado à reeleição, desfrute o privilégio do uso da máquina administrativa na campanha maquiada da inauguração de obras, dos discursos nos palanques para a assistência mobilizada pelos dirigentes locais, com jeito e oratório de comício.

O candidato pretende resguardar-se das críticas e provocações da oposição – enrolada nas mesmas contradições, quando na campanha do padroeiro da reeleição, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, na campanha de 1998, usou e abusou das facilidades do cargo – evitando falar em candidatura. Em iluminado instante de bom senso, abriu a reunião de ministros do primeiro escalão com a advertência: “não leio nem comento pesquisa. Vamos trabalhar.”

Duas novidades no embalo inspirado. Mas, é claro, sem abrir mão do privilégio da simulação, para acelerar viagens por todo o país, inaugurar as obras dos três do quatro anos do seu governo de modesto desempenho e aproveitar todas as oportunidades para desafiar o rosário das comparações das estatísticas do seu governo o do seu antecessor e odiado desafeto.

Boas intenções raramente resistem às provocações dos adversários. E a oposição, acuada com a virada de Lula, engrossa o tom das críticas pessoais, batendo rijo. A defesa do candidato entregue ao PT não merece confiança. O partido recebeu o certificado do tamanho do seu desgaste no índice nanico de 2,1% de eleitores que declararam que votarão em Lula porque é o candidato da legenda.

Antes de estrear os retoques no estilo da campanha mascarada, o presidente-candidato necessita fazer as pazes com a coerência para evitar a reincidência dos tropeços na contradição. Para ficar no exemplo mais nítido: no atordoamento do pipoco do escândalo da corrupção, com as CPIs dos Bingos e dos Correios despejando as denúncias das proezas do companheiro tesoureiro do PT, Delúbio Soares e do parceiro Marco Valério na arrecadação de recursos milionários desviados de empresas estatais, contas do exterior e outras tramóias, a indignada reação do presidente seguiu à risca o modelo correto, reclamando a apuração rigorosa das trapaças e a punição dos culpados. Rolaram cabeças ilustres. Com a demora nas investigações, a raiva foi baixando de tom, com os toques de tolerância.

Apertado pelas perguntas dos repórteres em programa de televisão, o presidente voltou à ênfase para afirmar que se ele tivesse sabido das lambanças dos que o traíram, certamente que o escândalo não teria acontecido, mas sufocado no nascedouro.

No forrobodó natalício do partido da desbotada bandeira vermelha, Lula escorregou no sabão da recaída. Em vez da punição dos culpados pela roubalheira pregou o aprendizado da humildade, com o reconhecimento dos erros cometidos e, “num ato de grandeza”, o pedido de desculpas. A dose de tolerância recomendou o conselho da sabedoria popular: errar é humano, só tropeça se der um passo.

O adendo enigmático ao provérbio venerando liga o sinal de alerta e cutuca a desconfiança: ninguém segura língua de candidato.

Marcus Accioly. Poeta

Dorian Gray CaldasArtista plástico. Escritor

Há tempos conheço Marcus Accioly, nunca escrevi sobre sua poesia. Coisa e outra vai passando o tempo e o registro não sai. Guardei seu endereço na minha carteira por alguns anos. Voltando a vê-lo em Natal, mostrei seu cartão, disse: guardo-o desde o dia em que fomos apresentados, para não esquecer o compromisso da amizade, pelo autor de "Nordestinados", Prêmio Recife de Humanidades / 72. Livro que está entre os meus escolhidos, dito isto, Marcus Accioly me deu outro cartão, com seu nome em forma de x semelhante a uma escrita chinesa, ou marca que abre em R em dois riscos de compasso partindo do R cruzando com o A de Accioly, laço nordestino, nó górdio que nos prende na sua melhor poesia, de fazer da vida este largo laço de amizade. Semelhança com Walt Whitman, o poeta largo e profundo; fascínio do fazer da vida uma doação à poesia.

Encontro entre os meus guardados um outro livro de Marcus Accioly, "Narciso", sem oferecimento, presente de Sanderson Negreiros, que além desse procedimento de doar livros, vai as livrarias comprar novos volumes, e que já os tendo em sua biblioteca, remete-os aos amigos. Transferências do bem-querer, duplicadas em atenções generosas. Vez por outra recebo estes pacotes de livros, alguns intactos, "Narciso" é um deles.

Tenho cumplicidade com o tema "Mito", alguns ensaios meus, versam sobre esse assunto. "Narciso" é a um tempo fascínio e beleza, o deitar-se sobre o belo ou a descoberta da beleza da sua própria imagem, como Marcus Accioly registra: "De Sísifo (canto III, estrofe XXI, versos, 743 e 752) livro primeiro – seguido Ixion e este "Narciso" – da trilogia épico – dramático – lírica do autor". "Dizem que os deuses lhe fundiram uma ardente paixão por sua própria imagem" Mitologia General página 232. Controvertido é o significado do mito de Narciso, que "por não poder agarrar a imagem suave e atormentada que viu na fonte, mergulhou dentro dela e se afogou". (Melville). Recorrências da poesia não só de Marcus Accioly, mas da poesia que reconhece no mito o diálogo constante do poeta com as suas perplexidades. Assim também é o diálogo de Narciso, do Poeta Marcus Accioly, com a sua voz interior, chama e drama na flor do rosto, "a folha da página", escrita, a esgrima da caneta, a solidão de Dante e suas musas inquietantes, o drama do amor das divindades mortas, a poesia em cinzas da hora amarga, "a concha ruda" das mãos nordestinas; a seca e o sol no seu epicentro; "a dor doída"; os ossos numa "canção de espuma", mas, se é preciso em flor ou espada, em frauta ou gelo ou "sobre o fogo da língua"; é preciso imprimir o desespero, o derradeiro latifúndio, o poeta canta, espalha seus versos em mil folhas de papel; espalha sua escrita em registros de aço e ácido; sustém as mãos dos maus; os olhos da ira, o poeta canta a elegia, a ode, o verso heróico, faz-se história. O mar levanta sua onda alta, a lágrima de ontem é a mesma o ritornello de ontem é o mesmo, o soneto fecha-se em tercetos.

Remansa navegos tanto o mar de Fernando Pessoa, de Camões, de Ulisses, "nunca o seu avesso sobre a água". Nunca deixar o verso incompleto, imperfeito. Marcus Accioly trabalha os "pássaros graves de cantos agudos", "a chave-do-soneto" o reencontro lhe basta. Procura a face do Narciso, a motivação do novo paradigma da poesia. É constante o diálogo do poeta consigo mesmo, seus antagonismos, suas metáforas, suas "lágrimas de sal do mar inteiro".

A voz que dentro de si chama e reclama a poesia é a única necessária; a poesia vive neste canto. Daí o poeta reclamar "ao vate uma cãtygua", o direito à divindade; todo poeta é divino em sua essência ou pretende sê-lo por prometido aos deuses. Para cantar o mar todos os versos pois Narciso "é um mar que sobre o mar se pôs"; para despertar o mar "o fogo da língua", a métrica larga, a Ode de Safo, O Tigre de Blake, As Litanias de Satã, de Baudelaire; pois, para despertar o mar, os ruídos das letras que o papel devolve ao leitor os "oooooooooooooo" quatorze vezes como num soneto, quatorze versos, ou os "rrrrrrrrrrrrrrrrr" os dezessete erres, rascantes, rastejantes como uma serpente que Marcus Accioly levado pela beleza dos sons, anomatopaicos da canção dos velhos marinheiros de Mallarmé expõe como um troféu da vencida fúria  do mar ou em contra ponto aos parnasianos. Esta é a missão do poeta, a cosmovisão com o seu tempo; o que está escrito, fica, registra a face ambígua do Narciso.

 É preciso despertar as divindades, dominar os ventos e o sono eterno de Zeus; chegar aos céus, dominar as fúrias; ir a outros céus que existem; esta é a missão do poeta; a dança bailarina da vida;o fascínio do homem, "do princípio ao fim" sua extensão de alma, para que a flor/Narciso se revele além da dor, além da morte e do poder de inventar não só o soneto, "e sim a sombra dele"; e mais que a sombra, jamais o estrambótico, o verso que transborda da borda do soneto. Assim como Narciso nasce e renasce o verso, o belo verso "como do mar vem a primeira onda", e sendo o mar Narciso, "ronda suas ondas".

Destino também de Recife, das pontes e dos rios; destino de Augusto dos Anjos, A negra silhueta projetada, a mesma mão que escreve, procura e reconhece, esta vocação homérica nesses versos que não morrem; Narciso sobre o espelho reinventa a outra face do mar no seu destino de poeta oceânico.

Marcus Accioly têm sido elogiado pela crítica brasileira com denotado interesse pela sua obra, Wilson Martins escreve: Marcus Accioly é, talvez o mais intelectual dos nossos poetas contemporâneos (…) porque como todo verdadeiro poeta vê a vida como literatura e a literatura como vida.

Fábio Lucas pondera: "Marcus Accioly faz a coreografia de todos os ritmos, pratica as convenções e as audácias de todos os tempos". Gilberto Freire, sentencia: "uma poesia que surgiu como diria Roquette Pinto, clássica – nova, inovadora e clássica." O que é raro num só poeta, esta confirmação de valores, este amálgama de invenções plurais e inovadoras.

O mar é seu destino, ou as "fazendas do mar" o seu fascínio, Camões que sabia o quanto dói a conquista, o feito heróico, mesmo sendo sob a égide da cruz e da bandeira reclama: o Velho do Restelo chora o infortúnio dos seus, os mais humildes.

Nem sonhos há agora sob as rochas, ou sob as ribas da maré dos penhascos; nem a flauta se escuta (Baudelaire); nem a guitarra andaluza de Lorca, o dia de Espanha em jacinto e sangue às cinco horas em ponto, quando o assassinaram. E de repente poeta Marcus Accioly no meio do seu canto heróico em meio aos rios gerais de Capibaribe e Beberibe, a redescoberta das fontes, o passeio à margem das casas com janelas e portas se abrindo nas manhãs de ontem, e esta sua poesia que nasce, imprevista, perempta, eternamente livre.

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