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Antes que os sinos dobrem

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Cláudio Emerenciano
Professor da UFRN
O sentimento da perda é transbordante, incontornável e amargo. Assume pleno domínio do estado de espírito. Misturam-se, então, saudade, lembranças e tristezas. O amigo – dizia o saudoso amigo Mário Porto – é um irmão por opção. Perdi um irmão em Luiz Eduardo Caneiro Costa. Suas qualidades e atributos como homem público são de amplo conhecimento em nosso Estado. Mas quero prantear, sobretudo, sua dimensão humana e cristã. Conheci-o menino no Colégio Marista. Nossa convivência atravessou tempos, circunstâncias e etapas em nossas vidas, sempre enriquecidas por seu testemunho de solidariedade, lealdade e intransigente defesa do bem e da verdade. Sentimentos partilhados pela legião de seus amigos e admiradores. Dedico a ele o texto a seguir, concebido antes do seu falecimento.     
As faces dos homens e os sentimentos que expõem o interior de cada um. O indivíduo diante deste mundo muitas vezes inexplicável. Nebuloso em face dos problemas que subvertem o sentido da vida. Que ignoram a magnitude e o peso da paz. Paz interior. Paz de uns com os outros. Paz que é justiça, compreensão, convergência, respeito e verdade. Paz incompatível com a virulência em todas as suas formas. Paz  fonte inesgotável de grandeza e elevação da condição humana: “Eu vos deixo a Paz…”
A genialidade de “El Greco” retratou a multiplicidade dos rostos humanos. Todos os sentimentos se estampam em seus quadros. Especialmente em “O Espólio” (Martírio de Cristo) e no “Enterro do Conde de Orgaz”. A alegria, a tristeza, o desespero, a solércia, a mentira, a bondade, a traição, a cobiça, a simplicidade, a pureza, a sinceridade e o amor. O amor infinito de Jesus pelos homens, cercado por algozes.
Tudo na vida tem sentido. Mas a globalização não é natural e legítima. O que sempre existiu, desde a aurora dos tempos, foi a universalização dos valores humanos. O homem é o centro de todas as coisas. Sobrepõe-se às razões de Estado.
Há indagações que emergem do coração e da consciência de todos os homens. O estágio de desenvolvimento não condiciona ou compromete esses questionamentos. Legítimos da condição humana. Especialmente os que se referem à aspiração mais natural, fecunda, sempre renovada e nunca excluída dos sonhos de cada um: ser feliz. São Tomás de Aquino, gênio e amplo conhecedor da natureza humana, intérprete e voz dos caminhos eternos, dizia que a vocação do homem é ser feliz. Ou melhor, a felicidade humana é um imperativo de sua identidade com Deus. 
A complexidade da vida social ampliou as responsabilidades governamentais. Os governos passaram a influir e condicionar, em escala crescente, a vida das pessoas. Desse modo, não é leviano nem temerário afirmar que os homens, através do poder político, numa dimensão universal, tornaram estreito ou largo, penoso ou agradável, o cenário em que se manifestam seus mais puros atos e sentimentos: o amor, as alegrias, a paz de espírito e a paz social, realizações pessoais, desde o campo afetivo ao profissional, a solidariedade, a fraternidade, enfim, a busca da felicidade. Até o ódio, a inveja e as vaidades, antagonismos à ascensão espiritual de cada um, integram o cotidiano da sociedade. Ainda que expressem, também em suas outras faces, como as guerras, a violência de qualquer tipo, as arbitrariedades, as injustiças e as discriminações, a antítese do que se convencionou chamar de vida civilizada. Hoje ameaçada em escala planetária por fanatismo religioso e político.
Um dos maiores escritores do século XX, romancista, biógrafo e memorialista, André Maurois, analisou as circunstâncias em que seu país, a França, ruiu em 1940 ante o poder militar da Alemanha no livro “Tragédia na França”. Em sua percepção o sonho francês se exaurira. Ou seja, manifestara-se, no campo moral, político e espiritual, aquilo que Edward Gibbon tão bem descreveu em “Decadência do Império Romano”. Resumidamente, quando um povo deixa de sonhar, sucumbe à desilusão consigo mesmo e seu futuro. Ingressa num processo irreversível e trágico de ruína dos valores morais.  Após a queda do muro de Berlim, símbolo da implosão do mundo comunista, o professor Paul Kennedy, da Universidade de Harvard, em “Ascensão e queda das grandes potências”, além de analisar o tema ao longo da História, acolheu a advertência de André Maurois, universalizando-a. Vivemos um ciclo de decadência. É preciso revertê-lo. Antes dos sinos dobrarem pela civilização da paz.
Aldous Huxley, romancista, filósofo, ensaísta, dramaturgo e futurólogo, foi um dos gênios no século XX. Poucos desvendaram como ele a complexidade das tragédias humanas em seu tempo, projetando seus desdobramentos até nossos dias. Em “A geração perdida” e “Também o cisne morre” qualificou os estigmas das crises universais nas novas gerações: “A vida. Eis a grande coisa, a coisa essencial. Deve haver vida na arte, senão a arte nada vale. E a vida só sai da vida, dos sentimentos, dos sonhos…; não pode nascer de teorias, que desfiguram a essência da condição humana”.    
As democracias se deterioram, sempre e sempre, pela sucessão de capitulações dos seus sagrados e imutáveis princípios. As pessoas, cidadãos comuns, certamente ainda não revelam todas as variáveis de sentimentos e perplexidades dos personagens de El Greco. Mas, com certeza, buscam a paz de espírito, a justiça, o respeito à sua dignidade. Ainda cultivam sensibilidade para desfrutar da beleza dos lírios do campo. Porque, apesar de tudo, a esperança e o sonho revigoram o homem.  
 
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