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Aretha Franklin, a voz de respeito

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João Marcos Coelho
Especial para a AE

A Rainha do Soul Aretha Franklin morreu nesta quinta-feira, 16, aos 76 anos, de acordo com informações da agência The Associated Press. Segundo seu agente, ela estava em sua casa em Detroit.

Aretha Franklin faleceu vitima de um câncer no pâncreas

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Em um comunicado, a família da cantora disse ter perdido “a matriarca e a pedra da família”. “O amor que ela sentia por seus filhos, netos, sobrinhas e sobrinhos não conhecia limites. Nós estamos profundamente comovidos pela incrível efusão de amor e suporte que recebemos de amigos próximos e fãs de todo o mundo. Nós sentimos seu amor por Aretha Franklin e nos traz conforto saber que seu legado sobreviverá”, diz ainda a nota. Os preparativos para o funeral serão anunciados nos próximos dias.

Aretha era uma força da natureza. A voz de enorme tessitura era capaz de alcançar agudos extremos, e ao mesmo tempo flutuar com segurança nos registros graves, sem contar o vibrato característico que acrescentava refinadas pitadas de balanço em seu jeito único de cantar. Aretha flutuava entre as notas, ora retardando, ora acelerando em momentos inesperados. Mas o que a tornou a Rainha do Soul, uma das grandes divas da música do século, sem dúvida foi o modo como transplantou a matriz gospel a outros gêneros populares, como o jazz, o blues, o pop.

Basta ouvir em sequência suas primeiras gravações, desde a primeira, de 1956, quando ela tinha 14 aninhos, disponível nas mídias digitais como Aretha Gospel. Na primeira faixa, There Is a Fountain Filled With Blood, apenas um órgão e seu próprio piano a acompanham; fiéis repetem “yes, yes” a cada verso. É de arrepiar. Aliás, se ouvir He Will Wash You White As Snow, em que o coral dos fiéis “responde” a cada verso com versos e palmas, você vai entender por que o gospel, nascido no sul dos Estados Unidos, ainda no século 19, é a matriz das músicas negras dominantes até hoje no universo das músicas populares. Sem concorrência.

Cinco anos depois, Aretha, com 19 anos, gravou um disco com o grupo de Ray Bryant, um dos pianistas de jazz mais blueseiros naquele início da década mágica de 1960. Ela canta e também toca piano, ao lado de Bryant.

Ouça o clássico de Gershwin It Ain’t Necessarily So, da ópera negra Porgy and Bess. A interpretação tem bastante a ver com Dinah Washington.

A Columbia, sua primeira gravadora, que a contratou ainda nos anos 1950, queria fazer dela a nova cantora sensação de jazz. Mas Aretha só encontrou o rumo definitivo em meados da década de 1960, quando passou a gravar para a Atlantic. De lá para cá, foram 18 Grammys, dezenas de milhões de discos vendidos. E o status de Rainha do Soul (ela foi coroada em 1967, em Chicago, pelo DJ Pervis Spann). São daquela década sucessos planetários como Chain of Fools, Spirit in the Dark e Think.

No final do século, 1999, saiu uma biografia autorizada de David Ritz. Insossa, oficialesca. Em 2014, Ritz publicou o verdadeiro tesouro que colhera em suas pesquisas. Apesar dos protestos de Aretha, o livro altera o modo como a conhecemos. O maior mérito do livro é mostrar o profundo, decidido engajamento político da cantora na década de 1960 – ela cantou com Mahalia em 1963 para arrecadar fundos para a Grande Marcha a Washington de Martin Luther King e apoiou publicamente Angela Davis, militante pelos direitos civis dos negros. Tudo refletido em memoráveis canções como Respect, (You Make me Feel Like) a Natural Woman e Chain of Fools, todas gravadas na Atlantic.

Aretha é “filha” musical da região do Delta do Rio Mississippi, é bom não esquecer – descendente direta da grande Mahalia Jackson e de Clara Ward. Bendito delta que pariu gênios do blues do porte de Robert Johnson, Son House, Howlin’ Wolf, Muddy Waters e B. B. King, entre tantos outros. Ainda criança, cantava no coral e participava dos cultos na igreja, compartilhando as suingadas pregações do pai, o reverendo Clarence, que inspiraram ninguém menos do que James Brown, o mago da soul music. Mas em casa, sentadinha na escada junto com os irmãos Erma, Cecil e Carolyn, ouvia pianistas como Art Tatum e Nat King Cole dedilharem o piano da sala. Outros visitantes ilustres eram Oscar Peterson, Duke Ellington, Ella Fitzgerald, Billy Eckstine, Lionel Hampton. A cantora Dinah Washington era uma espécie de madrinha das crianças e ensaiava com elas. Esqueci de dizer: além dos irmãos, acotovelavam-se também naquela escada miraculosa amigos como Diana Ross e Smokey Robinson.

Por um belo texto de David Remnick para a New Yorker em 2014, ficamos sabendo que ela escrevia a parte de piano, a harmonia de base e os breaks da bateria desde Chain of Fools até Natural Woman. Remnick a considera “a maior cantora da história da música popular do pós-guerra”.

E resume algumas de suas inovações: “Só a partir de Amazing Grace, sua gravação de 1972, ela passou a receber os créditos devidos. É portanto surpreendente, embora não devesse ser, ficar sabendo que Lucky Old Sun, de Ray Charles, e a versão de Otis Redding para Try a Little Tenderness se inspiraram nas gravações de Aretha dessas canções; que ela mesma gravava em ‘overdubs’ suas muitas linhas vocais sete anos antes de Marvin Gaye tornar famosa essa técnica em What’s Going On; que Eric Clapton ficou intimidado de tocar guitarra com ela; que sua gravação de 1967 de Respect, de Otis Redding, formatou o modelo de uma soul music socialmente consciente e comercialmente viável por muitos anos; que Gaye se sentiu recompensado quando ela cantou sua Wholly Holy em Amazing Grace – o disco com o qual, além disso, Aretha ajudou a ‘inventar o gospel moderno'”.

Aretha Franklin: 10 músicas para entender a Rainha do Soul
Enquanto seu legado e influência ultrapassam medidas materiais, é possível tentar entender o desenvolvimento de Aretha como intérprete e musicista por meio de suas gravações. Separamos 10 canções para entrar no mundo de Aretha Franklin:

There Is a Fountain Filled With Blood (1956)
Gravada quando ela tinha apenas 14 anos, as marcas do gospel americano (gênero fundamental da música negra americana) estão presentes, bem como seu piano (e apenas um órgão acompanha).

It Ain’t Necessarily So (1961)
Clássico de George Gershwin, da ópera Porgy and Bess, gravado com a banda de Ray Bryant, um dos pianistas de jazz mais blueseiros da época.

That Lucky Old Sun (1962)
A gravação de Aretha Franklin do sucesso popular dos anos 1940 pavimentaria o caminho para Ray Charles.

Chain of Fools (1967)
Se alguém poderia “tirar” uma música do repertório destinado para Otis Redding, esse alguém era Aretha Franklin. Hall da Fama do Grammy.

Think (1968)
Escrita por Aretha e seu marido Teddy White, a canção se tornou um hino feminista e foi seu sétimo Top 10 nos EUA.

How I Got Over (1972)
Uma das canções do disco Amazing Grace, o maior sucesso comercial da carreira de Aretha Franklin.

United Together (1980)
A canção marcada a ida de Aretha para a Arista Records e o início de sua extensa parceria com o produtor Clive Davis. A mudança de tom na parte final da canção é algo espantoso.

Sisters Are Doin’ It for Themselves (1985)
A canção com o Eurythmics fazia parte da estratégia da gravadora de fazer “renascer” Aretha Franklin nos anos 1980, aproximando-a de um dos grupos queridinhos das paradas. A parceria funcionou.

A Deeper Love (1994)
Aretha traz sua voz treinada nas igrejas para a pista de dança nessa versão da música do duo americano Clivillés & Cole. Majestosa, a canção levou a cantora para o topo das paradas da dance music pela primeira vez desde 1985.

Rolling in the Deep (The Aretha Version) (2014)
Em seu último disco, Aretha gravou sucessos de divas que não estariam ali não fosse o caminho aberto por ela 50 décadas antes. A versão do sucesso de Adele é o ponto alto do álbum.

Aretha Franklin: Veja a repercussão da morte da artista nas redes sociais
Nas redes sociais, músicos e artistas lamentaram a morte da cantora americana Aretha Franklin nesta quinta-feira, 16. A artista morreu em casa, ao lado de seus parentes, após lutar por oito anos contra um câncer.

“Vamos todos tirar um momento para agradecer a bela vida de Aretha Franklin, a Rainha de nossas almas, que nos inspirou por muitos e muitos anos. Sentiremos sua falta, mas a memória de sua grandeza como música e um belo ser humano viverá conosco para sempre. Amor, Paul”, escreveu Paul McCartney no Twiter.

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