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As aventuras de um juiz aposentado

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João Baptista Herkenhoff 

[ magistrado aposentado (ES) e escritor]

Quando depois de aposentado como juiz, também como professor me aposentei, fui tomado por uma crise de identidade.

O vazio manifestou-se forte quando tive de preencher a ficha de entrada num hotel.

Que profissão vou colocar aqui? Pensei alto.

Se estava aposentado na magistratura e no magistério, nem como juiz, nem como professor poderia me definir.

“Ser ou não ser”, eis a questão.  Shakespeare, pela boca de Hamlet, percebeu a tragédia humana, antes de Freud.

Ah, sim. Já sei. E escrevi na ficha do hotel, resolutamente: Professor itinerante.

Não que já fosse um verdadeiro professor itinerante. Estava mal e mal começando a jornada. Entretanto, essa autodefinição marcou no meu espírito uma mudança radical e fixei ali um itinerário de vida pós-aposentadoria.

Fiel a este projeto, tenho andado por aí a semear idéias. Não importa muito o valor real dessas idéias. Relevante é que a semeadura seja feita com alegria, espírito reto e boa vontade.

As pessoas idosas não têm o direito de guardar para si a experiência que a vida proporcionou. Segundo o filósofo inglês Alfred Whitehead, a experiência não é para guardar. É preciso que alguma coisa façamos com ela.

Quando estava na magistratura ativa, proferi palestras fora do Estado, porém com muita parcimônia porque o ofício de juiz me prendia à comarca. Aposentado como juiz, mas continuando ativo na Universidade Federal do Espírito Santo, ainda aí a liberdade de viajar era restrita em face dos compromissos do magistério regular.

Só depois de aposentado na Justiça e na Universidade, é que pude voar amplamente.

Falando aqui e ali, em congressos, seminários e cursos, vou sorvendo a aposentadoria.

Convocado por centros acadêmicos, tive participação em dezenas de eventos e também em congressos regionais e nacionais de estudantes de Direito.

Falei para advogados, a convite do Conselho Federal e de Conselhos Seccionais da OAB.

Disse a palavra solicitada em Universidades espalhadas pelo território nacional.

Como magistrado aposentado, levei meu verbo, em diversas cidades brasileiras, a colegas da magistratura ativa.

Falei para membros do Ministério Público, inclusive na Escola Superior do Ministério Público.

Falei também a profissionais alheios ao mundo do Direito: servidores da Fazenda Pública, jornalistas, engenheiros, arquitetos, enfermeiros, educadores populares, professores de primeiro e segundo grau.

De eventos de Igreja participei, por diversas vezes, no Brasil e no Exterior, não apenas daqueles promovidos pela Igreja a que pertenço, mas também de encontros ecumênicos, comungando sonhos de um mundo fraterno com cristãos de diversas denominações, muçulmanos e judeus.

Fui a Paris para um evento ecumênico, com passagens dadas pela empresa aérea, em circunstâncias muito interessantes. Marquei o lançamento de um livro meu, em Vitória, na abertura de um encontro nacional de Faculdades de Direito. No dia do evento, autor presente, convidados presentes, coquetel à disposição dos convivas, falta o ator principal: o livro que seria lançado. O pacote de livros, que se destinava a Vitória, foi parar em Belém. Fico envergonhado diante de tanta gente que esperava comprar o livro. Escrevo uma carta ao presidente da empresa aérea, sem nada pedir. Apenas relatando minha decepção. O presidente sensibiliza-se com o relato e oferta passagens para mim e minha esposa para qualquer cidade do mundo, onde pousassem aviões da empresa.

Conto a história a minha mulher e lhe pergunto: qual o destino? Ela não pestaneja: Paris, capital do mundo. E de Paris, um pulo na Grécia, berço da Antigüidade.

Até que me aposentasse na Justiça e também na Universidade, eu havia publicado dezesseis livros. Após a dupla aposentadoria, publiquei trinta e quatro novas obras, totalizando cincoenta.

A aposentadoria pode não implicar em encerramento de atividades, mas apenas na redução de compromissos exigentes. São múltiplas as novas experiências possíveis. Que cada um encontre seu caminho. Que a sociedade não cometa o desatino de desprezar a sabedoria dos mais velhos.

Agora, quando já vislumbro o entardecer, descreio de todas as seguranças supostamente conquistadas.

Volto a ser andarilho, peregrino, caminhante.

Aprendo com Guimarães Rosa: “Viver é perigoso. A aventura é obrigatória”.

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