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As colinas e a imensidade

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Cláudio Emerenciano 
Professor da UFRN
O mundo está permeado e confuso por vozes que se entrechocam. Muitas são convergentes e similares, outras tantas são divergentes e até sectárias. Há, entretanto, um clamor, que André Malraux, há anos, chamava de vozes silenciosas. Vozes que brotam do coração dos homens, reivindicando paz, harmonia, compreensão, tolerância, justiça, entendimento e sossego. As relações humanas, tanto entre conhecidos, quanto entre estranhos, deveriam pressupor civilidade, respeito mútuo, distinção. A humanidade, em sua grande maioria, quer exorcizar o mundo das vozes odiosas, irritantes, raivosas, hipócritas, falsas, irracionais, malévolas e mentirosas. Elas ignoram ou contestam o sentido maior da vida humana: o amor como elo infinito. Vínculo eterno entre Deus e o homem. A caridade, tão esquecida nessa conjuntura planetária de consumo em massa e materialismo, sem ética nem moral, não é apenas de natureza material. De modo algum. Expressa essencialmente o gesto, a atitude, o ânimo e a postura de quem não discrimina ninguém, a todos tratando da mesma maneira por serem seres humanos. A comunicação, individual e social, seria uma espécie de arvore centenária, como o carvalho, assombreando a todos. As recordações compõem também vozes do coração. Em regra geral, as vozes que circulam nas redes sociais semeiam a intolerância e o confronto radical entre pessoas, grupos e nações. Não se busca serenamente a verdade, a paz e a lucidez. Pretende-se o domínio de uns sobre outros. 
A mesma cena. A sensação de que aquele instante já tinha acontecido (o “dejá vu”). A percepção de que cada momento de felicidade, contraditando Vinicius de Morais (“Tristeza não tem fim, felicidade sim…”), não se exaure porque é eterno. É vivo infinitamente. Até pela saudade. É intemporal. Aloja-se no coração e na alma dos homens. Renova-se continuamente. Não se desfaz como a poeira das coisas indesejáveis, anti-humanas, que nada constroem nem engrandecem a vida. Existem. É verdade! São reais, perceptíveis e palpáveis. Irrompem em todos os lugares, tempos e culturas. Infelicitam, mas não ingressam no universo inesgotável do sentido da vida. São antagonismos, que desafiam a natureza e a vocação do homem. Intérpretes de textos sagrados chamam esse fenômeno de “legado de Adão”. Estigma e fonte de todos os erros, injustiças, misérias e contradições da humanidade. Mas a luz fulmina as trevas em todos os sentidos e circunstâncias. A escuridão significa, fundamentalmente, a dimensão do nada, do inútil, do sem sentido. Sucumbe ante a irradiação do menor feixe de luz. A verdade elimina a mentira, a farsa, a pusilanimidade, a felonia, as vaidades, as ambições. Eis, no fluir de todos os tempos, nada mais do que a face cruel, desperdiçada, vil e perdida de degradação da condição humana. Nessas contingências concordaríamos eventualmente com Thomas Hobbes (inglês), para quem o homem seria lobo do próprio homem. Mas Rousseau (suíço) se contrapôs com o primado da bondade e da mansidão.
Todos os grandes ficcionistas e poetas nordestinos ainda não esgotaram a descrição de êxtase e felicidade com a metamorfose dos campos, da caatinga, dos vales e das planícies da região, ante o sopro de vida das primeiras chuvas. Uma sensação de imensidade contagia o modo de viver e o estado de espírito do homem. Assim mesmo acontece com a floração arrebatadora da primavera em países de clima temperado. Por inúmeras vezes, juntamente com Dadaça (minha esposa) e amigos, compartilhamos esse desabrochar de vida em duas cidades, que se ergueram entre sete colinas: Roma e Lisboa. Invariavelmente a luz se arrasta preguiçosamente por essas colinas. Enquanto os raios de sol se projetam em cada edifício, em cada telhado, em cada mansarda, em cada torre. É uma espécie de saudação matinal à arte e à beleza dessas cidades. As formas e as cores do dia aparecem delicadamente, ternamente, como se batessem à porta de cada um dos lares, pedindo licença e soprando seu hálito de paz e suavidade. Certa vez, em Roma, senti essa imensidade, passeando por suas ruas e avenidas, quase vazias, no limiar do dia. Era o trajeto, iniciado na Avenida Cavour, para a missa dominical na Basílica de “Santa Maria Maggiore”. Outras vezes, mais constantemente, atravessávamos de lancha o Tejo, às primeiras claridades, juntamente com amigos, para um “café da manhã” em sua outra margem, de lá contemplando, senão todas, pelo menos quatro de suas colinas: a alegria de viver. Inesquecível a visão do alto no voo Natal/Lisboa, que chega cedinho de manhã. A cidade assim acolhe seus visitantes.
Entretanto, as folhas da memória não são folhas mortas, que o vento leva e desfaz. As ações humanas são folhas vivas, incorporando uma às outras. Renovam o sentido da vida. Desde a madrugada dos tempos quando a aurora devassou as trevas, eliminando-as com a fulgurância da luz.  A “terra dos homens” é indivisível. É partilha, comunhão e convergência. São efêmeros os egoísmos, a estupidez e a mediocridade.
As colinas apontam para o infinito. Os homens se projetam na imensidade. O amor, a caridade, a solidariedade, a justiça e a paz encaminham a humanidade para Deus. São folhas eternas, jamais destruídas. Nunca esgarçadas e destruídas. Sempre vivas. Emergem dos fundamentos divinos e universais da vida. O mal é uma folha morta. Não faz história. Não fecunda nem viceja. Seu destino é o esquecimento. Sua lembrança só reacende nas almas e nos corações a consciência dos tempos perdidos e mal vividos. Invoco meu tio-avô, Gothardo Netto, a quem não conheci, que foi original na prefiguração das folhas mortas: “Folhas mortas! Vos deixo às lufadas da sorte, como um bando augural de pássaros perdidos… Sem a sombra aromal dos pomares  queridos, sem um raio de luz que as alente e conforte!”.
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