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Batalhas de rimas e sonhos reúnem jovens em Currais Novos

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Ícaro Carvalho
Repórter

Um palco pequeno, com paredes laranjas e uma cobertura com blocos retangulares; uma arquibancada de concreto rodeada de coqueiros e a iluminação simples, mas suficiente para clarear o ambiente onde a cultura curraisnovense tem fervilhado ultimamente. A caixa de som logo é ligada com um jogo de luzes que  enche o rosto dos rappers. MC Vital, boné para trás, corrente no pescoço e  tatuagens, ele rima e cria versos com autoridade e facilidade que logo chamam a atenção. A Batalha do Gueto, em Currais Novos, Seridó potiguar, se iniciara. Morador do bairro Promorar, MC Vital, de 19 anos, é um dos jovens que participam ativamente de um dos projetos que vem trazendo alternativas aos jovens da periferia curraisnovense. Ele conta que o projeto ultrapassou o movimento restrito ao rap e tem atraído artistas de outros segmentos, escritores, poetas, movimentando a cultura de Currais Novos.

Os temas abordados não morrem após as Batalhas. Rodas de conversa pela cidade são realizadas para debater diversos conteúdos


Os temas abordados não morrem após as Batalhas. Rodas de conversa pela
cidade são realizadas para debater diversos conteúdos

A “Batalha”, assim resumidamente chamada pelo núcleo que a compõe e pelos participantes, surgiu em 2018, seguindo os ventos de uma nova geração do rap e do hip-hop que correu as  capitais do país, chegando, inclusive a lugares mais distantes, como as cidades de interior.

A história da Batalha do Gueto surgiu como a de tantos outros grupos de rima que emergem pelo país. Foi numa praça, com meninos e meninas interessados pelo rap e no hip-hop, querendo um espaço para extravasar e colocar para fora seus sentimentos, ideias, expressões e pensamentos. Antes do Gueto, os membros participavam da Batalha do Cristo, na Praça Cristo Rei. Após pequenas divergências, decidiram sair e criar a própria luta de rimas.

O local escolhido pelos rappers foi justamente um ambiente propício e subutilizado em Currais Novos: a praça da Rodoviária, praticamente no centro da cidade e num local com arquibancadas e um palco para os artistas criarem sua música. De lá para cá, rigorosamente às sextas-feiras, a Batalha do Gueto atrai, em sua maioria, a juventude da periferia e de outras regiões da cidade, tornando-se, com o tempo, num amplo espaço de representatividade e de vazão da cultura do gueto.

“O público-alvo é a juventude da periferia. Mas a gente não exclui outros. Fazemos o evento para esse público justamente por entender que essa juventude precisa ter acesso a lazer, a arte e a cultura e não tem.”, enfatizam Andrea Titos e Marília Gabriela em entrevista à TRIBUNA DO NORTE.

Dois pontos chamaram a atenção da reportagem enquanto acompanhou algumas edições da Batalha: a participação maciça de meninas e os temas abordados nas rimas dos participantes. São questões ligadas a desigualdade social, machismo, racismo, LGBTfobia, violência contra a mulher, combate às drogas, entre outros assuntos. Comumente, a Batalha do Gueto convoca rodas de conversa pela cidade para debater justamente esses temas, que oportunizam a discussão e acabam gerando pensamentos que logo entram nas rimas feitas pelos rappers.

A praça da Rodoviária, com suas arquibancadas e um palco, é ambiente escolhido para as Batalhas do Gueto


A praça da Rodoviária, com suas arquibancadas e um palco, é ambiente escolhido para as Batalhas do Gueto

E é justamente nesta sexta-feira (18) que acontecerá o grande evento do grupo nesses poucos meses de existência: o segundo Gueto Cultural, que pode ser definido como uma edição “amplificada” do evento que acontece semanalmente na cidade.

Entre outras atividades, a edição especial acontece ainda no sábado, com competições de BMX, batalha de breaking dance, oficinas de hiphop, apresentações culturais de gêneros musicais variados, como bandas de rock, artistas independentes e até grupos de forró.

Apoio da Justiça e Cypher do Gueto
Com inserção cada vez mais maciça na cultura da cidade, a Batalha do Gueto viu o projeto ganhar novos contornos quando recebeu, no ano passado, recursos do poder público para financiar as atividades do grupo. Cerca de R$ 10 mil, oriundos de penas pecuniárias da 2ª Vara da Comarca de Currais Novos, foram destinados para o projeto.

O recurso arrecadado foi utilizado para compra de materiais exclusivos para a batalha, como camisas e bonés para os participantes, aquisição de materiais necessários para a melhoria da própria batalha e por fim, para os dois grandes momentos do projeto: a articulação inicial para um CD com músicas autorais dos rappers, a ser lançado em breve, e a estruturação do Cypher do Gueto. Confira o clipe ao final da matéria.

“Ficou uma produção massa, você não sabe a satisfação. A periferia se vendo no vídeo sabe? Nunca pensei que ia fazer um vídeo assim, na minha casa, no meu bairro, mostrando a realidade da nossa cidade, da nossa periferia”, conta MC Vital, um dos rappers que participou do Cypher.

Batalha do Gueto acontece rigorosamente às sextas-feiras e já virou point em Currais Novos
Batalha do Gueto acontece rigorosamente às sextas-feiras e já virou “point” em Currais Novos

Aliado a isso, segundo os organizadores, ter o apoio do judiciário foi importante para várias questões, entre elas, amenizar o clima de preconceito que existe em torno do projeto e principalmente, oportunizar aos jovens da periferia uma oportunidade para ocuparem a cabeça com coisas que agregam.

“A gente percebe uma divisão. Existem pessoas que são preconceituosas e veem o rap como se tivesse bandido. Como também existem as pessoas que entendem que é um local de cultura. Até porque a Batalha do Gueto tem o foco de querer tirar o pessoal das drogas e mostrar que eles podem ter a cultura também”, conta Andréa Titos, relembrando um episódio em que a Polícia Militar chegou ao local de forma ostensiva para uma revista coletiva entre os presentes, caso que irritou os membros da batalha.

O episódio foi resolvido tempos depois com uma reunião entre a prefeitura de Currais Novos e a própria PM, num diálogo que objetivou a minimização dos conflitos e a conscientização sobre o projeto.

“Ali é um local para proporcionar arte e cultura por entender que esse jovem não tem acesso a isso. Se não fosse a Batalha do Gueto, como é que esse jovem estaria debatendo ou escutando as rimas sobre machismo, LGBTfobia, o sistema, a juventude, a corrupção. Para onde eles iriam na sexta-feira à noite?”, completa Rayssa Aline.

MC Vital: “O rap mudou a minha vida”

MC Vital tem um jeito próprio de se comunicar, como quem parece ter consciência do seu lugar e ao mesmo tempo como quem tem uma capacidade de criar versos e frases a partir de palavras soltas.

Duelos de MCs são uma tradição da cultura hip hop em todo o mundo, que encontrou um lugar de forma peculiar, na cidade seridoense


Duelos de MCs são uma tradição da cultura hip hop em todo o mundo, que
encontrou um lugar de forma peculiar, na cidade seridoense

Um dos nomes de destaque da Batalha do Gueto, o jovem Romildo revela que passou por muitos “perrengues” antes de virar o MC Vital. Morando desde criança num dos bairros mais periféricos de Currais Novos, ele  conta que as portas do mundo foram se fechando aos poucos. Não se sentia a vontade na escola e começou a fazer pequenos bicos.  “A sociedade é uma coisa meio complexa, foi me atacando psicologicamente, me botando para baixo, me ensinando a pensar que eu sou incapaz de fazer aquilo que eu sempre quis”, lembra.

Após perrengues dos quais quase lhe custaram a vida, conheceu o funk e foi entrando aos poucos no mundo da música. Começou a compor e cantar na escola aos poucos. Até que fez um rap sobre seu colégio, que logo viralizou. Viu que ali era o seu lugar. De Currais Novos, hoje é uma das inspirações para jovens que querem iniciar na música.

“É uma coisa que nunca imaginei conquistar, um reconhecimento, tá ligado? Das pessoas não me apontarem de dizer: ‘ije’ boy, lá vai Vital, malandro. Hoje em dia não, as pessoas falam e diz: lá vai Vital, Vital que canta rap, tá ligado? Todo mundo já conhece”, conta.

Hoje, de volta aos estudos para dar seguimento a vida, comenta que é grato por ter conhecido  pessoas que mudaram a sua história. Abriu a mente, passou a  absorver novos assuntos e ideias e tenta mostrar para os jovens de sua periferia que há outros caminhos a serem seguidos.

“Faço coisas que meus amigos chegam e diz: Vital parceiro, aquela ideia que você mandou ali é verdade, você me ajudou, era o que eu tava precisando escutar. Eu falo da minha realidade, mostro como foi minha mudança, a galera vai tentando se apoiar”, conclui.


Confira o Cypher do Gueto, produzido pela Batalha do Gueto em Currais Novos

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