A fé é a sobrevivência dos humildes. João Bernardo, Joca, é um deles. Quando surgiu vestido de frade franciscano na decisão do campeonato estadual de 1984, parecia prever tormentas e recitar salmos e versículos em comovente contrição.
O ABC jogava pelo empate contra o Baraúnas de Mossoró no Castelão e era fragmento do timaço do ano anterior, com apenas uma estrela, Dedé de Dora, sem Marinho Apolônio e Silva, artilheiros siameses, vendidos ao Bahia e ao Fortaleza.
O Baraúnas, valente como Mossoró e sua história, seu povo e sua memória, abriu 2×0 e passou a envolver jogadores experientes num toque de bola magnético, imposto por alguma entidade estranha ao jogo e as suas circunstâncias habituais.
O Baraúnas comandava a partida e a festa do bicampeonato, com trio elétrico encostado junto aos táxis na área onde agora há um deserto nomeado de estacionamento na luxuosa Arena das Dunas, caminhava para o adiamento.
Lembro-me de haver rezado o Santo Anjo, várias vezes, morto de sede. De título. Refrigerantes gelados passavam à minha frente e o nenhum centavo me alertava para a necessidade de ficar conformado no cimento que para mim sempre foi um sofá de pele russa de zibelina, a mais rara e cara do planeta.
Dedé de Dora, canhoto, buscava o jogo pela direita, levava a bola até a intermediária e, guerrilheiro, driblava quatro adversários até ser derrubado. O zagueiro Joel estava no auge dos seus chutes potentes. O ABC não tinha a técnica do passado recente. Sobrava-lhe a massa a gemer na basílica popular.
Escanteio cobrado pelo ponta-direita Curió, do lado esquerdo. Joel cabeceia primeiro, a bola vai sair e Dedé desvia do goleiro. Explode o estádio e no banco, o frade magro e devoto dá cambalhotas. Joca ergue as mãos aos céus.
São 44 minutos do segundo tempo. Dedé, que parecia 10 dele, é derrubado de novo. Joel dispara um míssil Exocet que explode nas redes quebrando a resistência mossoroense. Lembro de ter voltado a pé, para casa, no meio de uma passeata, dançando, chorando de tanto rir.
Joca tinha 15 anos quando chegou ao ABC. A idade que eu contava naquele tarde. Joca começou em janeiro de 1970 no time de Alberi e Marinho Chagas para ser o eterno roupeiro, o caprichoso preparador do manto das sacras batalhas.
Farei (ou não?) 50 anos de idade em agosto. Tenho menos tempo de vida do que Joca de ABC. Ele é muito maior do que eu. É a oração de São Francisco de Assis às segundas-feiras pela manhã, no exato trecho em que é mais importante amar do que ser amado. O amor de Joca ao ABC é a consagração do simples e anônimo frasquerino.
Globo