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Bóris Cyrulnik: ‘Quero compreender a minha ferida’

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Anna Ruth Dantas – Repórter

O psiquiatra Boris Cyrulnik ficou conhecido em todo o mundo por ser o criador da teoria da resiliência, que é a superação de um trauma, com a vítima buscando um novo tipo de desenvolvimento. Ele começou a estudar o trauma pela própria experiência pessoal: aos 6 anos, durante a Segunda Guerra Mundial, o menino Boris conseguiu escapar de uma batida policial que prendeu seus pais e sua irmã; os três foram deportados e mortos em campos de concentração nazistas. Aos 8 anos, ele estava sozinho e teve que reaprender a viver. Foi exatamente com a própria história que começou seus estudos científicos. Aliás, segundo o próprio Cyrulnik, foi por esse desequilíbrio que optou por seguir a carreira de psiquiatra.  Para ele, retomar o desenvolvimento pessoal após um traumatismo depende de condições neurológicas, afetivas, psicológicas e psicoculturais.

Boris Cyrunik criou a teoria da resiliência a partir de experiência pessoalO psiquiatra destaca o papel da família na superação de um trauma, mas observa que ela só poderá ajudar a vítima caso também não tenha sido traumatizada. “A família que apoia de uma maneira clara o traumatizado é capaz de superar. Mas constantemente é comum o traumatismo destroçar todos os laços familiares. E quando um membro da família sofre um trauma, toda a família fica traumatizada”, observa Boris, que esteve em Natal a convite do GRECON da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para participar do II Ciclo Internacional de Resiliência e Cultura. A mais recente obra do escritor é “Autobiografia de um espantalho”. Nessa entrevista, não poderia deixar de ser diferente, perguntei se ele se considerava um espantalho. “Tem algo horrível que aconteceu comigo e eu me sinto mal se contar. E se eu contar irei fazer medo para você. E quando eu estiver me vendo no seu olhar eu vou achar que sou um espantalho”, respondeu. Mesmo falando de um assunto tão sério e grave, Boris Cyrulnik não perde a simpatia e torna a conversa leve. Falou de trauma sem traumas e trouxe, nessa entrevista, algumas lições da sua própria vida e deixou a marca de que há muitas e boas perspectivas para se superar um trauma.

O convidado de hoje do 3 por 4 é Boris Cyrulnik.

O senhor ficou conhecido como o criador da teoria da “resiliência” (estudo que ele fez sobre traumas nas pessoas). Passados tantos anos, o que dizer da resiliência?
Durante muito tempo se pensou que quem sofria de algum traumatismo estava perdido para o resto da vida. Mas desde a Segunda Guerra Mundial nós nos demos conta que se tratarmos essas pessoas podemos não reencontrar o desenvolvimento deles, mas encontrar um desenvolvimento para eles. A resiliência trata de quais são as condições para a retomada de um tipo de desenvolvimento após um traumatismo. Essas condições são neurológicas, afetivas, psicológicas e psicoculturais.

Qual a relação da teoria que o senhor desenvolveu (de procurar um desenvolvimento depois de um trauma) com a própria história de vida que o senhor traz (perdeu os pais em um campo de concentração nazista)?
É algo inconfessável. Foi provavelmente, minha infância que é um pouco particular, está relacionada a minha motivação por ter me tornado psiquiatra e psicólogo. Se eu fosse uma pessoa equilibrada eu teria sido um marceneiro como o meu pai. Como era uma criança desequilibrada me tornei um psiquiatra.

Mas isso é um pragmatismo dos psiquiatras: trazer uma infância desequilibrada?
Eu penso que mesmo nas ciências duras há uma contra-transferência dos objetos da ciência. E o objeto dos nossos estudos é constantemente uma confissão auto-biográfica. Um certo dia eu estava numa mesa com linguistas e eu coloquei a mesma questão que agora você me coloca (se os psiquiatras tiveram uma infância desequilibrada). Eu perguntei por que eles se tornaram linguistas? Primeiro eles deram uma resposta teórica e, portanto, falsa, dizendo que “porque isso me interessa”, “porque isso me permite compreender”. E aí eu disse “não”, “quero saber a verdadeira motivação”. E praticamente todos tinham gostado de alguém que tinha tido uma dificuldade de linguagem. Alguém que gaguejava, alguém afásico, um irmão autista, um pai afásico. E eles fizeram do seu problema íntimo um objeto da ciência.

Abordando especificamente o traumatismo, para superar um trauma “se mata” ou “se deixa de lado”?
Quando se tem um traumatismo na vida ele está no corpo, na mente e na memória. Não se pode esquecer e se nós nos esquecermos é uma forma de reprimir, um recalcamento. Se faz uma escolha: ou se é resiliente, se resiste ao trauma, ou você é prisioneiro do seu trauma. Você faz algo a respeito disso ou fica preso (ao trauma). Para fazer algo você fazer um romance, ter um engajamento político ou se tornar um psiquiatra. Você pode se tornar um psiquiatra como eu.

E dessas alternativas qual a forma mais fácil ou correta de superar um trauma?
Tudo depende da idade e do contexto. Se eu perco a minha mãe quando sou um bebê é o meu mundo sensorial que se torna vazio. Mas nós seres humanos podemos sofrer duas vezes. A primeira quando temos o golpe real e a segunda vez quando nós sofremos na memória esse golpe. Para que eu possa superar um trauma é preciso que eu faça alguma coisa sobre o que a vida fez de mim. Caso contrário, eu serei um prisioneiro do passado, com uma síndrome psicotraumática. Se não, as coisas sempre me virão a memória, terei pesadelo, distúrbio do sono e muito do que penso é uma volta a minha memória, torna-se recorrente. Mas eu tento compreender isso. Eu tenho gana de compreender isso. Eu tenho vontade de compreender através de filme, romance, engajamento político. Se eu faço isso serei capaz de superar o que a vida fez comigo.

A partir de que idade a pessoa estará exposta a um trauma? Criança, bebê, vida intrauterina?
Antes do nascimento. Até o fim das nossas vidas. A resiliência se torna mais difícil a partir de 120 anos de vida (…ele dá uma boa risada…mostrando que a todo tempo é possível superar o trauma). Quando a mãe sofre um trauma o bebê no útero sofre neurologicamente.

Qual a idade em que há uma somatória ou um agravamento quando se sofre um trauma?
Nem sempre sofremos com trauma porque ele pode destruir alguém, acabar com a vida psíquica. Nesse caso não há sofrimento. É uma morte psíquica e quando estamos mortos a gente não sofre.

De quem é a culpa do trauma: dos pais ou da própria pessoa que não teve a capacidade de superação?
Aí você fez uma pergunta no raciocínio de Descartes. Ele (Descartes) nos ensinou que uma causa provoca um efeito. Não se coloca mais a questão dessa forma, porque quando eu sou criança uma informação que me chega pode ser algo difícil, enquanto que se eu tiver segurança, apoio, essa mesma informação não é agressiva. Uma informação me destrói, me agride quando estou só, e essa mesma informação não tem esse efeito quando estou com a família, me sinto apoiado e em um ambiente seguro. Essa informação só se torna uma agressão quando não tenho o entorno para me dar o apoio que eu preciso. E também a minha própria história faz com que eu atribua o significado a um evento diferente de outra pessoa. Um de nós dois será destruído pelo evento e outro irá se divertir com isso.

A forma como a sociedade está hoje organizada expõe mais as crianças ao trauma?
Veja, eu penso que antes da Segunda Guerra Mundial a vida cotidiana era uma sucessão de agressões. Na vida real se passava fome, tinha doenças, se via muitas mortes, mas como nós éramos cercados por nossos grupos sociais a gente superava esses traumas. O indivíduo inserido no seu grupo social era bem protegido, mas sua personalidade não tinha muitas linhas de opção para o seu desenvolvimento. Após a Segunda Guerra Mundial se fez 90% de todas as descobertas científicas da história humana. Enquanto nosso meio é muito menos agressivo se nós sofremos um trauma ficamos sós e muito mais vulneráveis.

Qual a participação ou responsabilidade da família para ajudar a superar um trauma?
A família que apoia de uma maneira clara o traumatizado ele é capaz de superar (o trauma). Mas constantemente é comum o traumatismo destroçar todos os laços familiares. E quando um membro da família sofre um trauma, toda a família fica traumatizada. A partir daí, a família deixa de ser uma base de apoio, de segurança. E nesse caso ela se torna um fator de antirresiliência. Se a família apoia, cerca, o ferido ela é um fator de resiliência. Se a família está ferida ela não conseguirá agir com resiliência (para ajudar a superar o trauma e traçar um novo desenvolvimento)

O que esperar da “Autobiografia de um espantalho” (é o nome do novo livro escrito por Boris )?
Tem algo horrível que aconteceu comigo e eu me sinto mal se contar. E se eu contar irei fazer medo para você. E quando eu estiver me vendo no seu olhar eu vou achar que sou um espantalho. Como eu falo de crianças traumatizadas, de pessoas idosas também traumatizadas, todas elas se tornaram espantalhos. Se eles aceitam a condição de espantalho não haverá resiliência. Se nós cercarmos ou apoiarmos o ferido e buscarmos uma mudança cultural para que a sociedade aprenda com a experiência do ferido ele poderá superar o seu trauma. Por isso que inicialmente eu falei da resiliência neurológica, mas agora tenho que falar da resiliência cultural. Eu falo apoiado de forma sensorial para que meu cérebro superasse o trauma, mas agora sobre o que eu não posso dizer o que você não pode ouvir praticamos uma negação. Mas se eu não poso dizer o que você não pode ouvir, eu posso escrever um romance, o que vai nos interessar e aí eu vou fazer um desvio através de um terceiro elemento. Como dizem os psicólogos, eu vou sublimar, metamorfosear minha experiência em um romance psicológico que pode ser que interesse e você então se divirta ou conheça.

Qual o objetivo ao lançar a “Autobiografia de um Espantalho”?
Eu penso que desde a minha infância o que organiza a minha vida é a vontade, a gana de compreender. Quando a minha vida, meu engajamento político é de compreender a minha ferida.

Qual o paciente mais difícil?
Os pacientes mais difíceis são aqueles convencidos de terem a verdade. Porque eles trabalham com a palavra e eu trabalho com a mentalização psíquica. Com eles, nós nos submetemos ou escapamos.

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