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Campanha da Fraternidade muda foco

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Sara Vasconcelos
Repórter

Há meio século, a Igreja Católica de Natal e, depois do país, realiza de forma mais prática a fé durante o período da Quaresma. É a Campanha da Fraternidade, que este ano aborda a Saúde Pública – tema de interesse social e de conhecida deficiência na prestação de serviços. Criada em 1962, em Natal, ao longo do tempo, a ação sofre adequações. Desde a escolha do tema, “menos eclesiais” que há 20, 30 anos, como também na forma de acesso e interação com a sociedade. Nas décadas de 1980 e 1990, além de residências, as ruas, praças e até estádios de futebol, como o antigo “Machadão”, em Lagoa Nova, eram palcos de manifestações públicas de milhares de fieis que denunciavam situações sociais. Hoje, apesar da temática social mais abrangente, a participação popular  não é tão visível, ao menos, nas ruas. Contudo,  a Igreja garante a ampliação no alcance da mensagem e adesão de outras instituições.
O tema da Campanha da Fraternidade deste ano é saúde pública
A nova abordagem, explica o coordenador da CF 2012 na Arquidiocese de Natal, padre Alcimário Pereira de Oliveira, corresponde a terceira fase da Campanha, além de seguir a mudança comportamental. “A CF está na fase de discussões sobre as situações existenciais do povo brasileiro. O tema deste ano, Saúde Pública, é pertinente ao tempo existencial”, explica o pároco da Igreja de Santa Rita de Cássia, em Ponta Negra.

Em uma primeira fase, acrescenta o religioso, “a Igreja trabalhava temas mais eclesiais, mais da Igreja. Era a época da renovação da Igreja, de refletir que Igreja somos e que Igreja queremos ser, só interessava a Igreja católica, não tinha o interesse comum”. A segunda fase se ergueu sobre a realidade social, a promoção  da justiça, com temas voltados para o ético, social e religioso.

 A saída da alçada religiosa para o campo existencial é, para padre Alcimário Oliveira, uma evolução na abertura da Igreja Católica para o diálogo com a sociedade e outras instituições. “A Campanha da Fraternidade 2012 sai do âmbito só da Igreja”, afirma o padre em referência a parceria com o Ministério Público Estadual, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Conselho Nacional  de Saúde, além de Secretarias de Saúde do Estado e dos Municípios de Natal e São Gonçalo do Amarante. A escolha do tema facilita o acesso a outras esferas, independente do credo. “Mesmo quem não tem veículo com religião, também adoece e precisa dos serviços de saúde”, observa.

O método também acompanhou as mudanças comportamentais, o advento de tecnologias, como a internet e redes sociais, e a insegurança pública, que desaconselha alguns eventos de rua à noite, como antes. A preferência – não só da Igreja – é pelo debate em ambientes fechados e também virtuais.  Ao invés de passeatas, há fóruns. “A população prefere estar mais confortável, sentada, discutindo, a estar em uma praça, em pé, ao relento”, analisa padre Alcimário. O uso de meios de comunicação permite também que mais pessoas conheçam e participem da campanha. “Nós mudamos para atingir o maior numero possível de pessoas”, garante o coordenador da CF no Estado.  “O número aglomerado impressiona, mas temos um número disperso  muito maior”, enfatiza. Mesmo que não veja a aglomeração, a olho nu, a interação cresceu”.

Prova disso é a participação popular  maior em audiências públicas, campanha de donativos e o aumento no Fundo de Solidariedade, realizado no Domingo de Ramos, quando fieis fazem doações financeiras. O número de envelopes distribuídos às paróquias a serem entregues a população saltou de 20 mil para 80 mil  em cinco anos.

Padre relembra ações do passado

É com saudade e certo pesar, que o padre Pio Hensgens, pároco de Morro
Branco, coordenador por 20 anos da Campanha da Fraternidade na
Arquidiocese de Natal, relembra as grandes concentrações que ganhavam as
ruas da cidade, no período da Quaresma, entre os anos de 1980 e 2000.
Época em que o extinto Estádio João Machado, o “Machadão” chegava a
reunir entre 30 a 50 mil pessoas, “com bandeiras empunhadas, faixas e
barulhos de carro de som”, lembra o sacerdote.
Embora admita que as mudanças obedecem a transformação comportamental,
padre Pio  Hensgens avalia o novo método como “um freio, um esfriamento”
na vibração antes inerente a realização da CF. “O pessoal tem medo de
dizer as verdades. Hoje há uma postura de ficar mais dentro do clérigo.
Os padres atuais não tem o mesmo entusiamo como antes. É um sinal da
própria Igreja. Há um desejo mais de acalmar, do que de por fogo na
discussão”, analisa o padre. Para acrescentar, em seguida, que a Igreja
também é responsável por mudanças sociais. “A Igreja tem a missão
profética de denunciar e hoje faltam profetas”, afirma o religioso.
As caminhadas eram realizadas por toda a cidade e marcavam o início e o encerramento da CF
Com entusiamo na voz, ele rememora as grandes procissões, comandadas por
Dom Nivaldo Monte, que percorriam “em oração e protesto pacífico” o
trecho entre a Igreja do Bom Jesus, na Ribeira, à antiga Catedral
Metropolitana, no Centro da cidade. Embora em número menor de padres,
diz ele, “havia grande apoio da sociedade”. Algo quase impensado hoje.
“As mudanças também são reflexo do mundo de hoje”, diz acerca da
violência urbana e deficiência em segurança pública.

Para o Monsenhor Lucas Batista Neto, a metodologia varia com o tempo,
mas mantém o foco na questão social ao atrair a atenção de gestores para
determinada área. “Hoje a Igreja não é encarregada de construir
hospitais, escolas, derrubar secretários e governos. O Estado é
responsável”, avalia o religioso.
Padre Pio fala sobre passado
As maiores concentrações ocorriam durante a abertura da CF e tinha
resultados práticos. “No ano em que trabalhamos a Fraternidade e a
população carcerária houve grande concentração, na Zona Norte.
Conseguimos que a sociedade voltasse os olhos para a cadeia pública,
agilizasse processos parados”, conta Monsenhor Lucas.

História

Há cerca de 50 anos, o cardeal hemérito Dom Eugênio de Araújo Sales –
então Arcebispo de Natal, Secretariado de Ação Social e Presidente da
Cáritas Brasileira  – iniciava, em Ponta Negra, a Campanha da
Fraternidade. Movimento de renovação interna da Igreja e   transformação
da realidade social do povo, com a “denúncia do pecado social e
promoção da justiça”. A CF foi realizada pela primeira vez na quaresma
de 1962, sendo o embrião de um projeto anual da CNBB no Brasil, dentro
das Diretrizes Gerais da Ação Pastoral.

Atuação das pastorais se mantém

O trabalho das pastorais,  com visitas domiciliares, é uma 
características inalteradas. Além da evangelização para vivência do
período de jejum, oração e esmola, em preparação a festa da Páscoa –
ponto alto do catolicismo – os agentes atuam, este ano, na divulgação de
políticas de saúde. Não só. De acordo com o  coordenador da CF, padre
Alcimário Oliveira, este ano os agentes irão ainda, por sugestão da
Promotoria de Saúde, fazer um levantamento das principais carências nos
serviços de saúde prestados à população. “A promotora Iara Pinheiro
sugeriu que levantássemos os problemas solucionáveis para trazer à
discussão. O fato de ser Igreja facilita o acesso às casas e podemos
traçar um panorama por zonal, paróquial”, avalia. As pastorais orientam
ainda sobre campanhas de vacinação, cuidados de higiene e de prevenção à
doenças.

O coordenador espera que a partir das audiências públicas que serão
realizadas na Câmara Municipal do Natal e na Assembleia Legislativa, os
parlamentares firmem compromissos para assegurar o acesso aos servidos
do Sistema Único de Saúde, bem como a adoção efetiva, em âmbito
nacional, do cartão SUS. “Às vezes não é questão só de financiamento e
sim de gerenciamento, leis e direitos são negligenciados porque as
secretarias de saúde não fiscalizam a atuação nos postos”. Outras ações
também são esperadas a partir do e do Fórum que discutirá a ampliação de
investimentos públicos para a saúde. Ao final da CF, a Confederação
Nacional dos Bispos do Brasil deverá, a partir das informações coletada
junto à Dioceses, emitir uma carta de intenções sobre a o sistema de
saúde público. “A Igreja irá pontar o que foi encontrado e fazer algumas
exigências aos gestores para melhorar o serviço”, disse.

Postura política se volta para ações socioeducativas

A postura política dentro da Igreja Católica, que serviu de berço à
Campanha da Fraternidade, se mantém e se volta, nos últimos anos, para
ações mais socioeducativas. A avaliação é da cientista social e
professora do Departamento de Ciências da Religião da UERN Irene de
Araújo Van den Berg,que é enfática ao dizer “Não há mudança no caráter
político da Campanha da Fraternidade”. Mas é preciso observar que o
formato da discussão tem relação com a mudança do estado político, da
organização política da sociedade, das estruturas políticas, acrescenta
ela.

A Igreja Católica, analisa a professora, continua articulada com as
questões sociais do país integrando o tema à catequese e evangelização
dos cristãos. “Não pode ter só um papel político ou papel social. É
preciso destacar que é também uma entidade religiosa”, pondera. O
compromisso se revela na escolha do tema: Saúde Pública.

A relevância da Campanha da Fraternidade, criada na década de 1960, não
é, segundo a cientista política, a de resolver o problema do sistema de
saúde, mas colocar em discussão as deficiências e possíveis respostas,
durante os 40 dias em que a comunidade católica trabalha também a
espiritualidade.

A estratégia de sair das ruas e atuar em núcleos menores e mais
dispersos acompanha, assim, a evolução social. Há 30 anos, explica a
pesquisadora, para por em evidência algum assunto era preciso mobilizar
bom número de pessoas em eventos  públicos, espaços abertos. Hoje com a
facilidade e agilidade de redes sociais, celular e internet as
discussões ocorrem de outra forma, em grupos menores, sem, contudo,
implicar em redução de importância.

“Esse contexto é fundamental para entender a eficácia das ações realizadas em cada tempo”, enfatiza Irene van den Berg.
A nova roupagem da Campanha da Fraternidade, com um trabalho
socioeducativo junto a pequenos grupos desagua na articulação de eventos
maiores. O usuário do posto de saúde, que  passa a conhecer e a brigar
para ter acesso ao medicamento, a médico para a consulta, a identificar e
denunciar falhas no sistema, pode ser formado no novo modelo, sem
inviabilizar protesto em praça pública.

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