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Cantos, batuques e danças de terreiros (6)

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Dácio Galvão [ [email protected] ]

A figura feminina “Helena” é idealizada em pelo menos dois Cocos de Zambê entoados na geografia da brincadeira potiguar. Temáticas: florista num. Mestra navegante em outro. Já reproduzido anteriormente, a versão cantada por Chico Antônio é tirada em emboladas: “Aonde vai Helena / De onde vem assim? / Vou colher as flores / Lá do meu jardim”. E zambeando, Geraldo de Zé Cosme é tirado nessas estrofes: “Helena quebrou o mastro / mas não quebrou a bolina / inda ontem vi Helena no entorno da usina”. A cadência é frenética num rufar grave do tambor Zambê, contraponteado por médios e agudos da Chama (espécie de Zambê menor) e da lata agredida nas suas laterais, percutida com bacalhaus, varas pequenas ou baquetas bastante finas. Andamento à mil. Quase-transe. Evoluções corporais em altíssimo desempenho. Os cantares solos e de respostas se somam, pautando as harmonias percussivas e escancarando gargantas. E cordas vocais. Haja gogó! E as mãos nos couros se espalmam. Dependendo do Coco, se bate no couro com um dos punhos cerrados. A roda se anima e bate palmas. Performances dançarinas se dimensionam. Alegria, alegria. Catarse. A Chama e a lata, instrumentos dependurados no pescoço, são tocados à altura da cintura. O Zambê conduz a orquestra percussiva, liderando o processo sonoro. Muito pesado, é amarrado na cintura. O batuqueiro monta no instrumento, numa cavalgadura dionisíaca. É figura central. Comanda o repertório. Dita o tempo. Sabe o momento de parar. De reacender a fogueira e reaquecer os instrumentos. Regula a beberagem.

O Coco “Êh-lê, Caninana” fora coletado no Rio Grande do Norte por Mário de Andrade ao final dos anos vinte do século passado. Recebeu do pesquisador a anotação de “Coco de palmas”. Se enquadra na linha do que ele denominara de “Cocos dos Bichos”. Ei-lo: “(Solo) – Eu fui na mata / (Coro) – Êh-lê caninana! / – Buscar imbé, / Êh-lê caninana! / – Cobra danada, / Êh-lê, caninana! Mordendo o pé! / Êh-lê, caninana”.

Esse Coco vem atravessando gerações e se ouve no CD Zambê Pernambuquinho, cujo mestre Mário Santana tira e os respostadores fazem o coro. Passados mais de setenta anos, a oralidade permanece trazendo pequenas modificações no plano métrico linguístico. Eis a versão atual: “Eu fui à mata tirar imbé / Cobra malvada / pegou no meu pé. / Óh! A cobra prum lado / Cobra a saltar / Pra me pegar / Cobra de leite / Cobra ligeira / Eu chamei pro cacete!”. Comparando as duas versões, a semântica do Coco é a mesma. O bicho que morde é a cobra e o imbé é a trepadeira buscada. No primeiro canto, a Cobra é danada e já está mordendo. No segundo, a pegada equivalente à mordida já é consumada. A ambiência é a mata. Acresce na versão de Santana a qualificação. A Cobra é malvada, salta, pega, é ligeira e é cobra de leite! Depois vem o golpe fatal no ofídio: “Eu chamei pro cacete!”. Neste Zambê, o batedor é Marcelo filho de Santana. Exímio.

 O chameiro é Isaque. Talentosíssimo, afirmam os mais entendidos. O autor de Macunaíma faz o seguinte fichamento sobre o “Olê caninana” no livraço “OS COCOS”, publicado numa parceria da Livraria Duas Cidades/Pró-Memória e Instituto Nacional do Livro, 1984: “A Caninana, tão inofensiva, é das cobras a mais ofendida pela tradição popular. Dizem que voa e se projeta como flecha em cima da gente, como se referiram Koster e Burton”.

Do Zambê real para o pictórico. O movimento da dança instiga a criação e repercute. Em 1958, para o “Mutirão do Nordeste”, de Helio Galvão, o gravurista e desenhista peruano Percy Lau fez suave, delicada e antológica ilustração à bico de pena. Alegorizou o batedor de Chama portando chapéu de palha junto ao tocador de Ganzarino. A Chama se assemelha mais ao Djembê, instrumento de origem africana. Depois, na capa do livro “Novas Cartas da Praia”, de 1969, vol. II, do mesmo autor, sem crédito para o ilustrador, aparece na cor preta o rabisco de caboco zambezeiro robusto. Estatura mediana. Musculado atarracado. Batendo pesado no Zambê. Cabeça achatada. Veste camisa com gola e manga. Assim como chameiro de Percy Lau. Vestimenta tosca passando na cintura correia de couro cru para sustentar inclinado o pau furado. As duas pernas da calça trazem abanhados dobrados. Pés descalços. Propositalmente, em linhas sobrecarregadas. A posição é de cavalo de pau ou de burra de palha de carnaúba. Na sequência, os artistas plásticos Alcides Sales e Flávio Freitas se expressam em desenhos e pinturas. Freitas afixou, num shopping da cidade, cinco grandes painéis de 3x50m de altura em preto, branco e cinza, pintando representações da arte popular: João Redondo, Boi de Reis, Figuras do Rabequeiro, Violeiros repentistas e o Zambê. Matrizes quadros. Estampam camisetas. Cada qual amalgamando as marcas estéticas que os caracterizam. O Zambê, para além de fotografias, agrega mais volumetrias e relevos.

Enquanto o Zambê das Cabeceiras do Chameiro João Biquinha opta – se possível – para fazer ressoar os toques num grande tronco de cajueiro jaqueira jenipapeiro ou numa cajarana pintada ou tratada com verniz transparente, os ingonos do Zambê Pernambuquinho são esculpidos em troncos de coqueiros. Naturalmente, menores no diâmetro. Ocados lixados se mostram em texturas que traduzem ranhuras macias brotadas da entrecasca da palmeira. A natural aspereza vai embora e o tambor vira arte. Por si. Tambor-objeto. Tambor-escultura. Sem rito. Mas com mito. O mito da ancestralidade. Da comunicabilidade. Do tambor falante e tribal. Sensual. Ou modernamente talk drums. Santana prefere o ingono de coqueiro. Mais leve e carregado de poesia. Canta seus zambezeiros: “Meu zambê de coqueiro / Que o vento botou no chão / Era o coco mais doce / que tinha da região”.

Zambê a dança. Zambê o instrumento que pode ser chamado de Pau Furado. Zambê na acepção de festa. Todos esses sentidos significados extrapolam as camisas de forças que tentamos vesti-lo. Manifestação em progresso. Agora, mais que nunca, nos desafios das marés e lagoas contemporâneas. Não batizadas. Se transformando. Assimilando desde lá provavelmente há mais de duzentos anos, quando no bairro das Rocas o “Mestre Paulo zambêou a vida durante 60, 70, 80, 90 anos, um século quem sabe?”. Como dizia a nota da República. Luis da Câmara Cascudo anotou em rodapé, no “Meleagro”, Agir Editora, 1978: “Quando Mestre Paulo Africano morreu, o órgão oficial do Estado, A REPÚBLICA, deu notícia extensa e saudosa; ver edição de 15 de abril de 1905. Portanto, fazendo as contas… O Zambê resiste claro no escuro da seu coro da sua pele”.

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