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Carimbo

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Foi num endereço localizado na Rua Princesa Isabel, no bairro da Cidade Alta, que fui ao encontro do arquiteto. Era na verdade uma casa-estúdio. E aí logo visualizei uns protótipos de embarcações náuticas do século XVI e mais fortemente um cinzeiro cerâmico que não queria calar. Foi na casa do arquiteto-historiador João Maurício de Miranda. Ele que tudo sabe do patrimônio iconográfico paisagístico-arquitetural e da presença francesa no litoral potiguar. De cara foi fazendo breve narrativa de um dos seus encontros casuais encontros com Helio Galvão quando ambos pesquisavam o acervo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Acentuou que numa dessas ocasiões HG se encontrava em uma escada portátil relativamente alta para garimpar documentos armazenados na estante de prateleira. De pronto o aconselhara a descer e o substituir no cumprimento da tarefa aérea.

E o cinzeiro queimado em alta temperatura assentado numa mesinha ficava ali me atraindo. De formato convencional, o vidrado era diferenciado. Inquietava os olhos e não me deixava em paz. Até que o peguei e identificando-o ser obra de do artista pernambucano José Cláudio (1932). Foi uma surpresa pois JC era e é muito mais conhecido como pintor. Ele interferiu em materiais cerâmico mas nessa linguagem não teve destaque produtivo. Não recordo se tinha elemento gráfico aplicado. O fato ficou marcado nesse encontro inusitado. Refluiria anos depois quando de um estudo que procedemos referente ao mestrado no campo de concentração em Literatura Comparada em Estudos da Linguagem, vinculado ao Programa de pós-graduação do Departamento de Letras da UFRN.

Apesar de José Cláudio ser mais conhecido atuando na figuração optei por atração e curiosidade por me deter na vertente também pouco difundida que foi sua arte-carimbo.  Fui influenciado por Wladimir Dias-Pino especialmente no que li-e-vi no clássico A MARCA E LOGOTIPO BRASILEIROS. Livro em coautoria com João Felício dos Santos trazendo posfácio de Antonio Houaiss. No recorte visual do carimbo de JC comentava Dias-Pino versejando às avessas: “Nossa época é da imagem / (sem peso) / transferida.” Cláudio estava muito mais para Abelardo da Hora, Di Cavalcanti, Gilvan Samico, Cláudio Abramo, Mário Cravo Júnior, Carybé… E claro, Picasso como ele mesmo se arvorava. Notadamente esses dados não impediram a inclusão de parte da sua obra dentro do conteúdo do poema – processo (1967-1972) movimento que se pretendia eminentemente visual e que se apropriava da máxima (Walter) benjaminiana da obra de arte na “era da sua reprodutibilidade técnica” ou ainda da indiferença no que diz respeito a autoralidade da mesma. À áurea pouco se importava.

Numa pequena amostragem do Livro de Carimbos se percebe o desenvolvimento de trabalhos propondo radicalmente a direção sinalítica: ícones gráficos de geometria carregada de certa abstração nos desenhos de carimbos aplicados. Nos desenhos-carimbos afigurados na tinta preta instauram-se movimentos alados sugerindo plasticidade de asas estilizadas. Pássaros sem corpos em revoada? A esmo nas planuras nebulosas e infindas? Pode ser uma entre várias opções de leituras.

Os carimbos da página direita sendo mais chapados, densos, seguem rumo mais homogêneo. Para cima. Rompem e estouram páginsa. O andamento é de ir. Seguindo. Aliás, as margens, o teto e o rodapé das páginas são utilizados em seus limites. Asas (?) em todas as direções. Experiências e geografias. Observa Wladimir no tocante a esse tipo de produção poemática: “Novas grafias. Experiências e consequências: com a inauguração de novos processos informacionais, onde o poema é seu próprio canal, surgiu a necessidade imediata de novas “escrituras”. Compete ao poeta mais do que ninguém encontrar soluções. Poemas sinalíticos: agrupamento descontínuo: valor gestual, ângulo-óptico.” 

Os resultados agrupados apreendem o olhar pela curiosidade. Pinta a descoberta de movimentos: os elementos se organizando no espaço branco em bumerangues simbólicos, oferecendo percepção rotativa. Ora se posicionam isolados, paralelos. Ora se tocam ou interpenetram-se. Sistemas de signos. Semiótica. Nesses carimbos não há palavras, só estruturas. Isso: estruturas!

Percorrendo semântica similar, o artista Josef Albers, genuíno representante da corrente da Arte Concreta, trabalhou com vários outros materiais – vidro, papel, madeira, metal, fotografia… – e observou o movimento de águas incididas por luz. Elaborou estudo para quadro em vidro (1927-1928), utilizando cores. O cinza – mas o preto e o branco eram predominantes enquanto pigmentos.

O fulcro essencial desses resultados estéticos aponta para a perceptividade das modulações. A dinâmica na planificação de superfícies díspares como papel e água, e a utilização de materiais diversos. Em José Cláudio, a carimbada sobre o papel fibroso e vegetal. Em Josef Albers, projeções de movimentação cinética pensando o refletir de luminosidades em águas. Albers tinha uma predileção pelo estudo de novas formas materiais. Ferreira Gullar no seu estudo Etapas da Arte Contemporânea: do cubismo à arte neoconcreta, alerta: “Formado na própria Bauhaus, da qual se tornou depois professor, Albers é o representante típico da atitude bauhasiana em face da criação. Para ele, o estudo do material, na sua condição perceptiva pura, imediata é o primeiro passo para a invenção estética. As cores são possuídas de certa inferência interna e ilusória.

No poema-carimbo de José Cláudio esse purismo perceptivo é eloquente. O exercício calcado no aparente conflito forma e conteúdo é abolido no espaço-tempo, traduzindo a imediata resolução isomórfica aliada a experimentação cromática limitada (não só) basicamente a duas cores. O preto (a derivação cinza), e o branco. Ao final, nos deparamos com a solução agradando a percepção cromática num conforto visual junta a uma dada indução lírica indissociável.

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