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Cartas aos tempos madrastos

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Yuno Silva
repórter

Jornalista da velha guarda, daqueles que preferem o barulho inspirador das antigas máquinas de escrever ao silêncio desconcertante dos teclados de computador, Agnelo Alves faz parte do time das personalidades que viveram intensamente um dos períodos mais ásperos da recente história política brasileira. Homem de ideias sólidas e opinião idem, este observador atento do cotidiano não mediu esforços para furar, com palavras, o bloqueio da censura durante a ditadura Militar quando, na pele de articulista, teve que escamotear sua identidade entre 1974 e 1982 para continuar assinando diariamente a coluna “Carta ao Humano” nesta TRIBUNA DO NORTE.
Jornalista e deputado Agnelo Alves reúne em Carta ao Humano, parte das crônicas que escreveu anonimamente para furar o bloqueio da Ditadura,  entre 1974 e 1982. O livro será lançado hoje, às 19h, na Siciliano
Parte do conteúdo produzido nessa época, que pelas contas do autor chega a mais de mil textos publicados, foi selecionado e reunido no livro batizado com o nome da própria coluna que o jornalista lança nesta quinta-feira, às 19h, na livraria Siciliano do Midway Mall. Ao todo são 102 artigos e crônicas, datados e distribuídos em 280 páginas, mais uma coleção de imagens históricas que remontam parte da memória natalense. O livro está saindo pela editora Z Comunicação, traz orelha assinada pelo jornalista e editor Osair Vasconcelos, prefácio de Woden Madruga e apresentação de Ticiano Duarte. Toda a renda obtida na noite de autógrafos será destinada à Casa de Apoio a Criança com Câncer Durval Paiva e à Liga Norte-rioandense Contra o Câncer.

A reportagem do VIVER visitou o jornalista e político em seu apartamento na manhã de ontem, quando conversou sobre o novo livro (terceiro da carreira) e as histórias que rondam o contexto em que os escritos estão inseridos. Ex-prefeito de Natal e recentemente de Parnamirim, Agnelo também acumula passagem pelo Senado Federal e hoje, aos 79 anos recém completados, é deputado Estadual eleito pelo PDT. Acomodado em seu escritório, onde a inseparável máquina de escrever reina no centro do birô, ele concedeu a seguinte entrevista:

Agnelo, você afirma que não conhece mais as redações de hoje. Há relação com o fato de preferir a máquina de escrever?

Até tenho um iPad, ganhei um iPhone, mas não sei usar direito. A máquina de escrever é que é minha confidente, ela sim me entende. Lembro que quando cheguei na redação, logo na transição para os computadores, estranhei o silêncio. Preferia a barulheira da minha época. Tenho duas máquinas de escrever, uma em casa e outra no gabinete (Assembleia Legislativa do RN) e continuo fiel a elas. Meus textos são redigitados por outra pessoa.

E sobre sua coluna “Carta ao Humano”, como era a rotina, o formato? Houve perseguição por parte da ditadura Militar?

Era uma coluna diária, onde escrevia sobre assuntos do cotidiano como futebol, o aniversário de fulano… coisas corriqueiras, mas sempre aproveitava para dar uma facadinha no regime Militar. Nesse tempo eu chegava na TN às 7h e saia às 22h, 23h, escrevia praticamente todo o jornal, até coluna social – quando Jota Epifânio precisava – também dava conta. Mandava recados através de jogos de palavras e quem precisava entender, entendia. No período mais turbulento da ditadura ia quase que diariamente até a Polícia Federal prestar esclarecimento sobre notícias publicadas, e quando cheguei a Senador da República (1999 a 2000) reencontrei o chefe de polícia  na época e perguntei por que não era questionado sobre o Neco. Ele me disse que gostavam da coluna, mas não sei se entendiam.

Por que a opção de assinar com pseudônimo? Questão de sobrevivência mesmo?

Tive meus direitos cassados durante um tempo, fui deposto do cargo de prefeito de Natal em 1969,  e não podia assinar nenhuma matéria. A maneira que encontrei para fugir dessa censura foi adotar pseudônimos, assinava como AG e meu principal interlocutor era Nelo. Ou seja, como AG escrevia uma carta por dia para Nelo, então temos AG + Nelo. Porém, um linotipista da TN acabou errando e trocou a letra G pelo Z, e da mesma forma trocou o L de Nelo pelo C por precaução, pois sabia da perseguição, que eu estava correndo riscos, e ficou AZ e o interlocutor Neco. Quando percebi, vi que não valia a pena mudar. Nesse tempo o jornalismo não era tão em cima do muro como é hoje, era parcial e nosso único compromisso era com a verdade.

Qual o critério adotado para se chegar ao conteúdo final do livro?

Fiz questão de evitar qualquer referência agressiva à personalidades da política local, algumas pessoas com quem me dou bem hoje em dia. Só com esse critério o número caiu de mais de mil textos para cerca de 300. Ainda dei uma nova selecionada até chegar a esse número de 102 artigos – ironicamente tive que ser censor de mim mesmo. Não quero recrudescer o radicalismo, pois era uma coisa localizada, era a maneira de me defender pois não tinha direito a nada, nem ao judiciário. Era dado como morto e não podia aparecer.

Quando percebeu que a situação estava fugindo do controle?

Chegou um momento em que a coisa ficou muito perigosa. Lembro que estava no cinema com minha mulher e interromperam a sessão no Cine Rio Grande. Dois oficiais do exército me aconselharam a sair de Natal por uns tempos, que a qualquer momento poderiam receber ordem para me prender pela segunda vez. Não convinha desafiar e fui para o Rio de Janeiro. O pior de tudo isso foi ficar sem escrever, verdadeira tortura mental. Tempos madrastos.

Você comentou que chegou a ficar preso.

Exato. Passei 49 dias detido no hotel de trânsito do Exército, e apenas quando a porta fechou atrás de mim é que dei conta: estou preso. Só podia receber visita de familiares. São muitas histórias para contar, e elas se cruzam com personagens como François Silvestre e os saudosos Rubens Lemos e João Amazonas, pois, de certa forma, eu e Aluízio Alves ajudamos essas pessoas em momentos cruciais da vida. Tínhamos noção da coisa, pois também fomos perseguidos e tem certas horas que ou você reage ou se acovarda.

Depois de tudo o que passou, qual seu maior receio hoje em dia?

Hoje, com essa tecnologia, meu receio é ver as pessoas transformadas em robôs, com chips implantados na cabeça. Estamos vivendo um período de transição e nem todos os avanços são positivos, é tanta facilidade, tanta velocidade, que as pessoas estão dando menos valor a coisas simples da vida, como contemplar o mar ou o convívio com a família por exemplo.

Trecho

11 de Dezembro de 1980

“Neco,notou como as moscas aumentaram? Sim, em tamanho e em quantidade. Parece até uns bandos de pequenos urubus. Por que, heim? Por que a cidade está mais suja? Pode ser, sim. Mas, pode ser também pelo calor. Ou o calor e o lixo, uma dupla de área própria mesmo para a transa das moscas. E como se multiplicam rápido, cara. Vez por outra a gente vê o amor entre elas em pleno ar. Uma zoeira incrível.  E haja mais moscas. Fico imaginando o sofrimento do confrade Luiz Maria Alves, o homem anti-mosca. Não sei como o seu jornal ainda não denunciou essa invasão da cidade pelos enormes batalhões das ditas-cujas. Aliás, duvido que Teseu, o atleta grego herdeiro do trono, em plena maratona em busca do pai, aguentasse uma mosca, dessas chatas paca, levantando e pousando no ouvido da gente, fazendo aquela zoada incrível que até os surdos mais pacientes ouvem e se incomodam. Ah, Neco, talvez por isto é que dizem que quando uma mosca pousa  num, a ambição cresce. Não se costuma dizer, quando o cara está pintando de candidato a governador, que ele está com a “mosca azul no ouvido”? Sim, suponho que a mosca azul é a mosca real, da família imperial, sangue azul. Sei que as que me azucrinam os ouvidos são plebeias mesmo, moscas-povo, sofridas…”

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