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Cascudo — Livro inicial

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Sanderson Negreiros – Escritor

Aos 22 anos, de monóculo e indumentária elegantíssima, que ele  dizia copiada das revistas de moda de Paris, delfim do Principado do Tirol, vasto hectare de sonhos e sombras, lembrando versos bucólicos do poeta latino Vergílio – que ele era obrigado a estudar e aprender na métrica poética mais difícil que existe, Luís da Câmara Cascudo publicou um livro sobre autores potiguares, poetas principalmente, com o título de “Alma Patrícia”. Essa ponta meridional do Atlântico teve uma vocação histórica: há de ter em cada esquina um poeta, em cada rua um dramaturgo, sem esquecer que, no começo do século XX, segundo pesquisei, havia quase cem jornais circulando no Rio Grande do Norte – diários, semanários, jornais quinzenais e mensais, além dos que saiam avulsamente. É só ler os primeiros volumes da Revista do Instituto Histórico, fundada em 1902, e a quem o Governador Alberto Maranhão, jovem mecenas de apenas 21 anos, doou a gráfica mais moderna que existia no Brasil. Evidentemente importada. Pelo menos, os dez primeiros volumes dessa revista são de um apuro gráfico inexcedível.

Natal vivia o tempo da “belle époque”. Retardatária – está certo – mas prenunciadora de tema que valeria hoje ampla tese universitária. Não dessas teses que são antíteses do bem escrever e historiar, com fluidez sugestiva, o palpitante decurso de uma época em que era chique imitar Paris em quase tudo. Lia-se nos jornais de então que os jardins de nosso Teatro chamava-se de “foyer”. Com o advento da 3ª guerra mundial, e a decisiva presença americana entre nós, mudou o azimute dessa influência – o “foyer” passou a chamar-se de “hall”.

Filho do homem mais rico de Natal, pois seu pai possuía o maior número de afilhados – segundo avaliação que esse atributo conferia -, Cascudo de repente se viu sem sua “baratinha” (carro sem capota, importado dos Estados Unidos), quando seu viver era glorioso, açambarcando todos os ventos generosos do mar e do rio, as brisas perfumadas de jardins sucessivos, as quietudes cantantes dos sítios que guarneciam a cidade. Sua família era praticamente dona da cidade, mas pagava um preço muito alto por isso. Ficou pobre – o pai, Coronel Cascudo, de tanto avalizar títulos comerciais, finou-se financeiramente.

Mário de Andrade hospedou-se, ainda nos tempos de fartura, no Principado do Tirol. Mas, segundo Jaime Wanderley, o último amigo que conheci e que participara intensamente, ao lado de Cascudo, dessa profusa riqueza de vivências materiais e espirituais, dizia-nos que o Coronel Cascudo, consagrando o pedido do filho, mandava trazer do Rio de Janeiro grandes cantoras líricas, atores e atrizes dramáticas ou não dramáticas, para apresentar-se no ilustre casarão do Tirol e acrescentava: “Sanderson, o Principado era uma festa móvel, contínua, dia e noite – mesas fartas e enfartadas de comida e bebida”, era o que nos acrescentava o poeta Jaime. Quando tudo desmoronou, Cascudo foi estudar Medicina e Direito, longe de Natal. Voltou para tornar-se somente professor, como gostava de se auto- definir e, devagar, sem que ninguém acreditasse, tornou-se o maior etnólogo do Brasil – “Não gosto que me chamem de folclorista” – , confessou certa vez.

Em 1924, morre o historiador Manoel Dantas, que, além de suas virtudes intelectuais, serviria hoje de exemplo inestimável. Naqueles idos, fora Secretário de Educação do Estado – ia para o trabalho a cavalo. Na sua morte, Cascudo fez-lhe o elogio fúnebre e enfatizou: “Morreu quem, nesta cidade, ainda me defendia quando eu era mordido pelos cachorros”. Desabafo significativo a servir de exemplo que a sabedoria conquistada exige que se arraste pesados grilhões no chão da terra natal.

Antes do “Alma Patrícia”, Cascudo escreve um prefácio para edição do livro do primeiro poeta que ficou registrado oficialmente no Rio Grande do Norte: Lourival Açucena. É sua primeira página antológica, que vibra ainda hoje pelo tom elegíaco de um prosador que se revelava poeticamente ao escrever prosa. Lourival Açucena era um ser contraditório: tanto cantava nas novenas de Maio como esteve preso, por razões criminais, na Fortaleza dos Reis Magos. Cascudo reuniu o que restou de Açucena, escrevendo um prefácio belíssimo, não só sobre Natal, mas descrevendo a pastoral de sua própria infância, solitária e contemplativa. Isso mesmo antes de “Alma Patrícia”.

 Lembro, ainda, de duas prateleiras de sua biblioteca, onde desorganizadamente ele enfileirava os livros de sua autoria. Em 1974, presidente da Fundação José Augusto, me propus reeditar seu livro “Viajando o Sertão” – mas ele não possuía  sequer mais o livro. Quem salvou a situação foi Manoel Rodrigues de Melo, que guardara um exemplar. A meu pedido, Manoel fez o prefácio e Newton Navarro desenhou a capa.  Talvez, ao lado de João do Rio, seja o primeiro livro de reportagem, escrito e publicado no Brasil. João do Rio escreveu “A Alma Encantadora das Ruas”. Cascudo foi o repórter a surpreender a alma inesquecível e ainda selvagem do sertão. Passei mais de trinta anos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como professor, pedindo aos alunos que lessem esse livro e o pesquisassem em profundidade, pois, nele, havia sugestões de temas importantíssimos a serem estudados sobre a formação do Nordeste brasileiro, segundo o próprio Cascudo nos aduzia. Como, por exemplo, a presença do português, do norte de Portugal, nos sertões que vão das fronteiras do rio São Francisco até os limites do Piauí – na fundação do ciclo da civilização do couro, como definia Capistrano de Abreu. Em contraposição ao português que aqui chegou, e que ficou na vastidão litorânea, vindo do sul de Portugal. Eram dois biótipos diferenciados e diferenciadores em tudo. Cultural e psicologicamente.

Cascudo sofreu o assédio das línguas vituperinas – como se dizia – e esqueceu o julgamento provinciano. Sua glória veio de fora; foi preciso que de longe viessem dizer a Natal que, aqui, morava um ser superior Um sábio.  Capaz de escrever “Alma Patrícia” – livro de iniciante – mas igualmente chegar à Suma Teológica de sua vida, que é o livro “Civilização e Cultura”.

Pode-se até dizer que “Alma Patrícia” é um livro menor. Contudo, na obra de um grande escritor não existe livro menor. Até um opúsculo que ele escreva, residirá, ali, uma expressão, um pensamento, um dado revelador, que expressam o autor de quem esteve sempre acima da realidade ambiente, adiantando-lhe um espaço de grandeza e descoberta estilística, contundente de sabedoria.

Dirão os comoventes semióticos de hoje que Cascudo tinha um estilo, na época de juventude grandiloquente, condoreiro, d”annunziano. Mas é só ter calma e esperar: nesse estilo, que pode às vezes ser rebuscado, nasce, inesperado, o veio do grande escritor. De repente, na frase, uma palavra, um torneio de signos e significados, uma claridade: lá está o escritor. Igual a Gilberto Freyre: antes de serem sociólogos ou etnólogos, eles foram essencialmente escritores. Fundaram um estilo, particularíssima maneira de dizer, através da palavra virtuosa de poesia e de fabulação, com um  ritmo de criatividade que só uma escrita nova singulariza. “Alma Patrícia” foi sua Escola de Sagres. Desse cais venturoso, ele partiu para sua aventura intelectual. E existencial.  PS – Prefácio que escrevi para a reedição de “Alma Patrícia”, a convite de Woden Madruga, quando presidente da Fundação José Augusto. E o faço agora a pedido de alguns alunos e professores de escolas públicas, com necessárias modificações.

 

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