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Cem anos do movimento modernista

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Sylvia Serejo
Especial para a Tribuna do Norte

Ruptura, questionamento e quebra de paradigmas: estava ali, em palavras, imagens e sons o conceito do que hoje chamamos largamente de ‘inovação’, ou, mais recentemente, um movimento ‘disruptivo’.
Museóloga Rebecka Borges seleciona obras de cinco artistas do RN para exposição ‘Raio-que-o-parta’, do  Sesc SP
Não era só rebelde e esquisito. O ‘novo’, proposto naquele evento, não trazia apenas a ousadia de chocar só por chocar. Ali se consolidava, com data, hora e local, o que o Brasil passou a registrar historicamente como Movimento Modernista, com a realização da Semana de Arte Moderna, ou a Semana de 22, em São Paulo.

Foi de 13 a 18 de fevereiro que aconteceu a barulhenta e sagaz reunião de artistas e escritores brasileiros, que queriam dar visibilidade a ideias transformadoras. Um grande festival de arte, no Theatro Municipal de São Paulo, com um time nada acanhado: na Literatura, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet. Nas Artes Plásticas e Música, Anita Malfatti, Di Cavalcanti (a quem coube criar a capa do catálogo da exposição), Santa Rosa, Villa-Lobos e Guimar Novaes.

No auge do evento, a leitura do poema Os Sapos, sob gritos e vaias da plateia, lido por Ronald de Carvalho, acabou se convertendo numa espécie de declaração de princípios dos modernistas. Clássico da poesia moderna, até hoje o mais citado nos livros didáticos que tentam traduzir para os estudantes o significado do movimento, através da crítica à métrica, ao Parnasianismo, ao academicismo de uma forma geral. E Manuel Bandeira, autor do poema, nem lá estava para assistir ao momento considerado mais sensacional da Semana – não pôde comparecer por motivo de saúde.

A proposta era diferentona e tinha como objetivo renovar a visão artística do país a partir de uma estética mais voltada aos aspectos nacionais. Era uma busca por romper com o conservadorismo e a formalidade parnasiana, rigorosa, que se opunha à liberdade lírica desejada pelos modernos e românticos. Em resumo simplista, pode-se dizer por exemplo na pintura, que aqueles artistas perceberam que, para ser arte, não precisavam mais representar um cachorro, um homem ou uma árvore, como se fosse uma fotografia.

Embora a Semana de Arte Moderna tenha acontecido com data específica, os episódios desse movimento artístico iniciaram bem antes. É famosa a passagem em que, em 1917, a exposição de Anita Malfatti, com a tela ‘O homem amarelo’ gerou a grande polêmica com o conservador Monteiro Lobato. Também foi em 1917 que os escritores Mário de Andrade e Oswald de Andrade se conheceram, e em seguida começaram a imaginar o conjunto de ações que teria como ápice a Semana de 22.

Caricatura de Mário de Andrade, que Erasmo Xavier deu de presente a Mário. Obra hoje no acervo da USP

Como toda inovação, iniciativa não foi bem recebida pelos mais tradicionais. O período era República Velha, liderada por oligarcas do café, e da política conservadora que dominava o cenário. A burguesia, habituada aos modelos estéticos europeus mais arcaicos, sentiu-se agredida em suas preferências artísticas.
Mesmo com tantas críticas, o evento conseguiu atrair um grande público. Muitos reagiram com repúdio a algumas obras. Os jornais da época referiram-se aos artistas como “subversores da arte”, “espíritos cretinos e débeis” ou “futuristas endiabrados”. Os organizadores sofreram uma espécie de ‘cancelamento’: Mário de Andrade inclusive chegou a perder alunas em suas disciplinas, pois as famílias tradicionais não queriam seus filhos envolvidas com aquelas ideias.
À exceção disso, na época, a Semana não teve grande repercussão – foi com o tempo que o evento ganhou seu devido valor histórico. Seis anos depois, em 1927, Mário de Andrade escreveu ‘Macunaíma’, publicando em 1928, quando o Modernismo já era um movimento literário mais consolidado com nome, identidade e ideologia. Era uma nova fase, que também foi marcada pelo ‘Manifesto Antropófago’ de Oswald de Andrade, que se caracterizou por quebrar a ideia de aceitar tudo o que vem de fora, dos países estrangeiros.  

Tupi passou por aqui

No Rio Grande do Norte, Câmara Cascudo foi o grande divulgador do Modernismo. Já em contato com grandes nomes do cenário nacional, ensejados pelo fato de estudar Direito no Recife, Cascudo toma contato com Joaquim Inojosa e, através dele, acaba tornando-se próximo a Mário de Andrade, por volta de 1924. No entanto, por aqui Cascudo consegue transitar entre o Regionalismo – tão presente no Parnasianismo e no Simbolismo – e o Modernismo, sem a ruptura que ocorreu em outros pólos culturais, o que de alguma forma sintonizava muito bem com a percepção de Mário, que enxergava o regionalismo como um traço legítimo da brasilidade.

Colagem Erasmo , obra de Erasmo Xavier, que estará na exposição do Sesc/SP

E foi assim que Cascudo, através da amizade com Mário, acabou inserindo as ideias modernistas em terras potiguares.

Erasmo Xavier: Nem tão desconhecido assim

Para muitos é uma surpresa a lembrança de Erasmo Xavier entre as obras selecionadas para a mostra Raio-que-o-parta. No entanto, sua relação com o movimento modernista foi mais intenso do que se supõe.

Erasmo nasceu em Natal em 1904. Era ilustrador e caricaturista, tendo também trabalhos em cenografia. Por volta de 1917 seguiu para o Rio de Janeiro, exercendo vários ofícios. Trabalhou para o Teatro de Revista, foi auxiliar do cenógrafo Raul de Castro no Teatro Recreio, realizando, entre outras montagens, carros alegóricos para o Carnaval do Rio de Janeiro, assim como também produziu o cenário do primeiro baile de Carnaval no Aero Clube de Natal.

No retorno a Natal, em 1928, colaborou fortemente com a revista Cigarra, cujo editor era Adherbal de França – fez todas as capas e quase todas as ilustrações dos cinco números que circularam. Foi no final desse mesmo ano que se encontrou com Mário de Andrade, que aqui veio em sua Missão de Pesquisa Folclórica. É de Erasmo a foto que registra a visita de Mário junto com Antônio Bento às ruínas de Cunhaú, em janeiro de1929. Provavelmente foi nesse encontro que Erasmo presenteou Mário com uma caricatura de sua autoria, que Mário guardou até a morte, e hoje faz parte do acervo de artes visuais do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. É o único original de que se tem notícia, afora os 19 trabalhos que estão no acervo da família.
Arte de Erasmo Xavier, tido como o primeiro artista visual modernista do RN
Entre idas e voltas ao Rio, Erasmo publicou dezenas de caricaturas, ilustrações, capas, para as revistas nacionais Fon-Fon, O Malho e a infantil Tico-Tico, na qual seus primeiros desenhos foram publicados quando ele ainda tinha cerca de 15 anos. Mas há registros de trabalhos seus publicados até 1934 – quatro anos após sua morte, numa das capas da revista O Cruzeiro – um dos grandes veículos da época. Levado pela Tuberculose, morreu aos 24 anos, numa carreira fantástica e meteórica.  

Cronologicamente, Erasmo hoje é considerado o primeiro artista visual modernista do Rio Grande do Norte. Está no prelo a edição revista e ampliada de sua biografia, com cerca de 400 páginas, pela sobrinha Rejane Cardoso, guardiã do acervo da família.

RN tem nomes em exposição do Sesc/SP que celebra a Semana de 22

Pelo país inteiro, sobretudo nas cidades onde houve maior repercussão ou que tiveram mais representantes no movimento, estão programadas exposições, debates, palestras, para celebrar centenário da Semana de 22.

Pelo porte, uma das mais significativas será a mostra Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil, no SESC 24 de Maio, em São Paulo. Com abertura marcada para dia 16 de fevereiro e duração prevista até 7 de agosto, a exposição integra o projeto Diversos 22, do Sesc São Paulo, que celebra o centenário da Semana de Arte Moderna e o bicentenário da Independência. Serão 600 obras de 200 artistas de vários estados brasileiros – e o RN tem nomes contemplados nessa especial seleção.    

Com a capacidade de articular o conceito de modernidade com produções de várias partes do território brasileiro, a exposição consegue destacar a centralidade – ou a descentralidade – do evento de 1922, a partir de uma organização cronológica e também geográfica. Ou seja: a mostra traz a noção de que a arte moderna já era discutida por muitos artistas, intelectuais e instituições de Norte a Sul do país, desde o fim do século 19 até meados do século 20. A curadoria-geral é de Raphael Fonseca – historiador da arte, crítico e educador, doutor em História da Arte pela UERJ, que hoje colabora como curador de arte moderna e contemporânea latino-americana no Denver Art Museum (EUA), e tem no currículo importantes projetos recentes, como a Sweat (Haus der Kunst, Munique, Alemanha, 2021) e Vaivém (Centro Cultural Banco do Brasil, 2019- 2020). Mas ele conta com um valoroso time de curadores assistentes e pesquisadores do Sudeste e outras regiões do Brasil.

A Raio-que-o-parta traz uma diversidade que reúne nomes como Lídia Baís, Mestre Zumba, Genaro de Carvalho, Anita Malfatti, Tomie Ohtake, Raimundo Cela, Pagu, Alberto da Veiga Guignard, Rubem Valentim, Tarsila do Amaral, Mestre Vitalino. E daqui do Rio Grande do Norte são cinco participantes: Dorian Gray com um trabalho, Maria do Santíssimo com três trabalhos, Iaponi Araújo, Moura Rabello e Erasmo Xavier com dois trabalhos.  

Mais de 100 instituições e colecionadores cederam obras, entre eles a Pinacoteca do Amazonas, o Mamam de Recife, o Museu Nacional de Belas Artes, o MAC da USP, o MAR-RJ, Masp, Pinacoteca do Estado de SP, Museu de Arte do RS, Museu de Arte de Belém, Museu Antropológico da UFG e o Museu de Arte da UFSC. Do RN, as obras foram cedidas pela Pinacoteca do Estado e pelo acervo particular de Rejane Cardoso (no caso de Erasmo Xavier).

A exposição traz ao público a certeza de que a noção de Arte Moderna, no Brasil, é tão diversa quanto as múltiplas culturas, sotaques e narrativas que compõem um país tão imenso. E propõe a desmitificação da versão de uma modernidade ‘paulistocêntrica’.

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