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Clube dos Inocentes

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Woden Madruga 
Chico Buarque diz no seu romance O Irmão Alemão que os livros “parece que engordam quando confinados”.  Falou assim quando procurava numa das estantes do pai um certo livro e não o encontrava, mas sabia que  estava ali: “sei que ele estava naquela prateleira acima dos meus olhos, atrás dos poetas portugueses, um palmo à direita da Comédia Humana, porém não será assim tão fácil reencontrar a sua vaga. A esta altura os livros já se acomodaram no fundo da estante, já se empurraram uns contra os outros, parece que engordam quando confinados”. 
Esta semana tive essa mesma sensação quando andei procurando um livrinho nas estantes da minha sala desarrumada. Fiz várias tentativas. Não imaginei que ele pudesse ter engordado, até porque nasceu fininho, magrelo de nascença, mas poderia ter sido imprensado por dois de lombadas gordas. Encontrei-o. O livro é o Saturnino, Cascudo e o Clube dos Inocentes, de José Melquíades, publicado em 1992, e tem apenas 48 páginas, fininho, pois.  Conta a história de uma confraria de amigos que fez época em Natal aí pelos anos de 1950, o Clube dos Inocentes, idealizado pelo professor José Saturnino. Começou com três (“Os Três Mosqueteiros”) e com o passar do tempo agregou outros companheiros, bons de papo, de copo e de garfo. O grupo cresceu, apareceram novos “mosqueteiros”, mais de uma dúzia, mudou de nome. Passou então a chamar-se de Clube dos Inocentes.
Os encontros eram nos bares, peixadas, restaurantes e também nas casas dos “inocentes”.  Melquíades, que integrava o bloco, um de seus pioneiros –  ao lado de Saturnino, Câmara Cascudo (presidente de honra), Renato Gouveia, dr. João Medeiros Filho –  vai contando essa trajetória toda.  Do grupo faziam parte também Djalma Santos (bancário), Gorgônio Regalado de Medeiros, professor Ascendino Henriques de Almeida, Eulício Lacerda, Milton Cavalcanti, Severino Nunes, Reinaldo Ferreira e Diógenes da Cunha Lima.  Professores, empresários, escritores, poetas, profissionais liberais, pastores da amizade.
O livro de José Melquíades, que chegou a exercer o cargo de “Relações Públicas” do clube, registra um dos períodos mais agradáveis de uma Natal que passava um pouco dos 100 mil habitantes, tempo de ouro do Grande Ponto. O Bar Cisne, da rua João Pessoa,  era um dos templos dessa boemia. Ler e reler suas páginas (muito bem escritas com o talento literário do autor) é um passeio amorável por uma Natal que já não existe. Veja como Zé Melquíades descreve o Bar e Confeitaria Cisne:
Aquele Bar Cirne. Localizado bem no coração do Grande Ponto, concentração de políticos, advogados, intelectuais e desocupados, celebrizou-se por três coisas: a incorrigível fedentina do seu sanitário, o fanatismo getulista do garçom, José Américo (agravado pelo peleguismo da sua jangolatria) e por um joguinho de bozó chamado “melé de mesa, pelo qual, o prof. William Aires tornou-se o campeão dos perdedores.
Os professores
O professor José Saturnino de Paiva foi um dos mais importantes educadores do Rio Grande do Norte. Ensinava português. Foi professor do Atheneu, da Escola Normal de Natal, do Centro e Instrução Almirante Tamandaré (da Marinha), do Ginásio 7 de Setembro, dirigiu grupos escolares na Capital e no interior do Estado e fundou a sua própria escola, que funcionava na Praça Pedro II, olhando para a Igreja de São Pedro, subindo o Alecrim. Sempre vestido de terno completo, paletó e gravata, dominando o linho branco, barriga proeminente, possuía uma verve sedutora, um bom humor permanente, excepcional conversador.  Suas aulas eram ministradas com a arte de um grande ator. Fui seu aluno no Ginásio 7 de Setembro, anos de 1948 e 49, colega de turma de seu filho Ivan Paiva, o Ivan Cacuruta, fundador do Bar Ateneu, craque no futebol, no tarol e bom de briga.
Também fui aluno do autor do livro, professor José Melquiades, que ensinava latim no mesmo 7 de Setembro, dirigido pelo grande professor Antônio Fagundes. Tornamos depois amigos e companheiros de rodadas inocentes de bares, incluindo o Cisne. O aluno seguindo o mestre. Outro professor meu, no mesmo colégio, foi Arnaldo Arsênio de Azevedo, que escreveu o prefácio do livro. Ensinava francês.
Na dedicatória do livro, José Melquíades escreveu: “Para o jornalista Woden Madruga, meu ex-aluno do 7 de Setembro, onde começou a aprimorar a sua inteligência, com as recordações do velho professor, receba, aqui, o afeto que se prescreve. Natal, 25.7.92, José Melquíades”.
Um dos personagens do Bar e Confeitaria Cisne, William Aires, citado no livro, também foi meu professor, ainda no  7 de Setembro. Ensinava Matemática. Anos depois fiquei gostando mais das aulas dele no Cisne, mormente depois da 12ª garrafa de cerveja.
A carta de Murilo
Entre as páginas do livro Clube dos Inocentes encontrei cópia de uma carta que Murilo Melo Filho (datilografada em papel timbrado da revista Manchete), enviou para José Melquíades:
“Rio, 6 de julho de 1992
Estimado José Melquíades:
Durante este fim-de-semana, no meu refúgio de Teresópolis, li de um fôlego o seu “Clube dos Inocentes”.
Nem sei, a esta altura, o que admirar nele:  se a riqueza da narrativa, se o prazer do texto, se o rigor dos detalhes.
Volvi um pouco ao ambiente de Natal, às suas figuras humanas realmente apaixonantes – Cascudo, Saturnino, João Medeiros, Diógenes, Ascendino Henriques, Arnaldo Arsênio – que povoaram, com as suas existências, todo o nosso painel de homens agradáveis e inteligentes.
Seu estilo, como frisou Arnaldo Arsênio, lembra muito Eça e Machado. Eu acrescentaria: Humberto de Campos e Drummond. Este foi um agradável encontro meu com um excelente estilista, que tem o direito e o dever de nos brindar sempre com textos tão gostosos como as deste livro.
Sob as bênçãos de São Julião, dando uma prega no tempo, com a proteção do Rei-Vassalo, vamos estar todos condecorados.
Um abração do conterrâneo e amigo de sempre, que muito o estima e admira,
Murilo
P.S. – Encaminhei ao Austregésilo o exemplar que lhe mandou. Esperemos que tenha a boa educação de agradecer.
M.”
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