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Coletiva e engenhosa

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Marcelo Alves Dias de Souza 
Procurador Regional da República •  Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL •
Mestre em Direito pela PUC/SP
O crime é um ato reprovável que pode ser praticado por uma só pessoa. Entretanto, com relativa frequência, esse ato delituoso é praticado por mais de um indivíduo. A isso damos o nome de criminalidade coletiva. Um fenômeno que hoje vem ganhando cada vez mais relevância no cotidiano do direito.

Não que a criminalidade coletiva seja um problema novo. Pelo contrário. O grande Miguel de Cervantes (1547-1616) – que muitos apontam como superior a Shakespeare (1564-1616) no domínio da criminologia –, lá no comecinho do século XVII, já tratava do assunto. Como anota o nosso Lemos Britto (1886-1963), em seu “O crime e os criminosos na literatura brasileira” (Livraria José Olympio Editora, 1946), “Cervantes nos antecipou o conhecimento da criminalidade coletiva, exercida por intermédio das quadrilhas de salteadores e malfeitores, distinguindo-a nos seus dois aspectos ou formas principais, uma agindo no espaço rural, selvático, montanhês, outra urbana, cada qual adotando métodos e política diferentes. A primeira, nós a encontramos em Dom Quijote de la Mancha, quando este e Sancho, às portas de Barcelona, se defrontam com o bando ou a quadrilha de Roque Guinant; a segunda, sevilhana, aparece na novela Rinconete y Cortadillo (…). Quem quiser estudar a delinquência das associações de malfeitores, inclusive os chamados Sindicatos da Morte ou ‘mãos-negras’ das grandes cidades norte-americanas, há de procurar as novelas exemplares de Cervantes. Aí está, para exemplo, o grupo constituído por Maniferro, Chiquiznaque e Repolido, que são os executores das sentenças proferidas pelo bando ou por seus chefes, no século XVII”. Recomendo, por óbvio, a leitura do Quixote e das Novelas.

A questão é que a tal criminalidade coletiva tem se tornado cada vez mais engenhosa e frequente. Acho que disso todos nós já demos conta, com as pessoas falando diariamente das tais “Orcrims” (organizações criminosas), muito embora, com frequência, inadequada ou mesmo levianamente (e isso, em tempos de populismo, é um sério problema).

A ciência penal, claro, há tempos também se apercebeu disso, tentando normatizar e categorizar esse fenômeno – da criminalidade coletiva – da melhor forma possível.

O nosso Código Penal, por exemplo, disciplina o concurso de pessoas (em coautoria ou mediante participação) em seus artigos 29, 30, 31 e 62, afirmando, entre outras coisas, que, “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade” (art. 29, caput).

O Código também tipifica, no seu art. 288, caput, um crime de “associação criminosa” (antes chamado de quadrilha ou bando): “associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes”. Dois elementos devem estar aqui presentes: (i) associação de três ou mais pessoas; (ii) com o fim específico de cometer crimes. Essa união estável dos agentes, com o fim específico de cometer crimes, distingue a associação criminosa do simples concurso de pessoas, acima referido.

Já a Lei 12.850/2013 (dita “Lei do Crime Organizado”) cuida da tal Orcrim. No seu art. 1º, § 1º, define: “Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”. E cria, no seu art. 2º, o crime de organização criminosa: “Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa”, com pena severa que vai de 3 a 8 anos de reclusão. A associação criminosa e a organização criminosa não se confundem. Entre outras coisas, para sua caracterização, a organização exige pelo menos 4 agentes e uma estrutura ordenada, com hierarquia entre seus membros e divisão prévia das funções de cada um deles.

Por outro lado, ainda quanto à criminalidade coletiva, tem-se a atenuante do crime cometido “sob a influência de multidão em tumulto, se não o provocou” (CP, art. 65, III, e). Trata-se do crime multitudinário, do qual um bom exemplo seria aquele decorrente de briga generalizada em estádio de futebol. Justifica-se a atenuação da pena pela falta de serenidade transitória de que padecem os indivíduos sob a pressão de uma multidão amotinada.

Evidentemente, nos dias de hoje, em que tanto se fala de Orcrim, em que tanto se prática multitudinariamente crimes contra a honra, precisamos estudar melhor todas essas categorias. Para não cometermos impropriedades. Para não sermos populistas. Para não cometermos injustiças.

Por derradeiro, deixem-me fazer uma confissão saudosista. Os tratados de direito penal do meu tempo de graduação cuidavam desses temas muito bem. As coisas eram mais simples, é verdade. Mas como os antigos escreviam bem – talvez porque eles tivessem lido o engenhoso Cervantes.

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