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“Com menos corrupção teríamos avançado mais contra o trabalho escravo e infantil”

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Andrielle Mendes – Repórter

Enquanto em regiões como o Sudeste o ponteiro da erradicação do trabalho infantil pouco se mexeu na última década, no Nordeste ele caiu 13,44%. No Rio Grande do Norte não foi diferente. A redução, entre 2000 e 2010, chegou a 20,9%, como mostraram os censos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O estado é um dos mais bem posicionados. Ainda assim, há muito a ser feito, afirma o ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Lélio Bentes Corrêa, que participou na última semana do 2º Encontro Norte-Riograndense dos Advogados Trabalhistas, evento realizado anualmente pela Associação Norte-Riograndense dos Advogados Trabalhistas (Anatra). Corrêa, que também é membro da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ministrou palestra sobre a transnacionalização. À TRIBUNA DO NORTE, antes da palestra, ele mostrou que o problema que afeta o mundo do trabalho é muito mais abrangente.

A Câmara dos Deputados está em vias de votar a PEC das Domésticas, proposta de emenda à constituição que aumenta os direitos dos empregados domésticos. No centro do debate, está o custo das mudanças. Para os empregados, a garantia de direitos. Para empregadores, a elevação dos custos. Como o senhor enxerga esta dualidade?
A PEC vem em resposta a uma Convenção da OIT. Não é razoável que em pleno século 21 a nossa Constituição não reconheça uma categoria tão importante para a economia.

Entrevista/ Lélio Bentes Corrêa/ministro do TST
Para a ONG Doméstica Legal, que iniciou uma campanha para reduzir os custos da formalização, aprovar a PEC, isoladamente, estimularia a informalidade, que já ultrapassa 60% no país, e geraria demissões. Este risco existe? Ele pode ser minimizado?

A questão de elevação de  custos para o empregador me parece relativa. Afinal de contas, os direitos que faltava assegurar aos trabalhadores domésticos não terão um impacto financeiro tão elevado. Há a questão do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), mas é uma retribuição mais do que justa. Trata-se de uma proteção mínima para que numa hipótese de demissão esses trabalhadores não fiquem sem  meios de prover sua subsistência. Penso que assegurar proteção legal e dignidade ao trabalhador só causa risco de demissão naquelas relações que já eram precarizadas. Não penso que vá estimular a informalidade. Até porque essa já é uma classe fortemente marcada pela informalidade. Essa obrigação legal vai trazer para o Estado a oportunidade de fiscalizar o efetivo cumprimento do direito e com isso dignificar a profissão.

O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) divulgou recentemente o número de autorizações concedidas a trabalhadores estrangeiros. O número subiu 30% no país mesmo num ano de desaceleração. O MTE só autoriza a ocupação de vagas por estrangeiros quando os brasileiros não podem ocupá-las por falta de qualificação. Mesmo assim, a impressão que fica é que as melhores vagas ficam para os estrangeiros. O senhor tem essa mesma impressão?
Essa é uma impressão muito acurada. Com a abertura das fronteiras e a facilitação da migração da mão de obra, o critério para recrutamento é efetivamente o desenvolvimento das habilidades. Nosso déficit educacional está na base de toda essa situação. Nós não sentimos  este efeito antes porque a economia sobretudo nos países industrializados ia muito bem e não havia esta atenção tão voltada para o nosso país. Com a crise econômica lá fora e o surgimento do Brasil como um país em franca ascensão isso mudou. Há uma tendência dessa mão de obra buscar emprego aqui. A solução a meu ver é investir maciçamente na qualificação profissional dos nossos jovens. São milhões de jovens ingressando no mercado de trabalho. Eles tendem a encontrar cada vez mais dificuldade para conseguir o primeiro emprego. Esse é um aspecto para o qual o Estado precisa ter a máxima atenção. Nenhum processo de crescimento econômico será sustentável se não houver mão de obra qualificada.

O Brasil se preparou para crescer?
Eu, infelizmente, constato que não. A conquista da estabilidade econômica do país foi sem dúvida extremamente positiva. Mas a atenção à educação está muito longe do desejado. Com esse déficit, temo que não estejamos à altura da capacidade de desenvolvimento que o país apresenta. Temos hoje setores inteiramente novos com um potencial de geração de empregos fantástico. A economia verde é a que mais cresce no mundo. São setores importantes, altamente competitivos. Se não formarmos nossa mão de obra, não teremos êxito.

O Ideb do Ensino Médio do RN não avança desde 2009. Além disso, o estado apresentou um dos menores Idebs do Brasil. Não estamos avançando ou estamos avançando a passos muito lentos?
Na verdade, todos esses fenômenos estão intricados. Claro, alcançar uma meta de elevação do número de matrículas no ciclo Fundamental é importantíssimo para que se possa lançar as bases de um modelo educacional de qualidade, mas ao mesmo tempo se não houver investimento na qualidade do ensino propriamente dito, valorização dos professores, de sua formação, investimento na infraestrutura física das escolas,  investimento na elaboração de um currículo que seja atraente, um ensino que permita as crianças vislumbrar um futuro melhor, todo esse esforço vai por água abaixo. Ainda é um desafio para o Brasil assegurar uma educação de qualidade para que essas crianças cheguem a um nível posterior de ensino, dominando efetivamente, as habilidades que necessitam dominar, no ciclo Fundamental. Temos o analfabetismo funcional elevadíssimo e o desempenho em praticamente todo o país, em comparação com outros países emergentes. É fundamental assegurar a essas crianças um ensino gratuito, acessível e de qualidade. Sem isso nenhuma mudança de natureza econômica será sustentável a longo prazo.

 Na sua avaliação, os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, que tiraram milhões de pessoas da pobreza extrema, conseguiram reduzir o trabalho infantil e o trabalho escravo?
Essa é uma pergunta muito importante. Houve sim uma redução nos últimos cinco anos em cerca de 1 milhão no número de crianças e adolescentes que trabalham no país marcadamente no Nordeste, região que apresentou a maior redução. Mas ainda há um número grande (em torno de 3,5 milhões) de crianças e adolescentes trabalhando, alguns deles nas piores formas do trabalho infantil. O desafio ainda é muito grande. Os programas de transferência de renda são importantes para debelar ou pelo menos mitigar a miséria que campeava no Brasil há alguns anos. Mas se essas políticas não vierem acompanhadas e articuladas por ações efetivas especialmente na educação se tornarão inócuas.

Houve impacto também no trabalho escravo? Relatório da OIT mostra que é grande o número de trabalhadores resgatados da condição análoga ao trabalho escravo beneficiários do Bolsa Família…
É verdade. Há reincidência porque esses programas não tem sido capazes por si só de gerar um desenvolvimento local que propicie a geração de emprego e renda no lugar onde o beneficiário mora. É necessário também mudar a cultura de exploração que campeia em muitas regiões do país. E é sentindo a mão pesada do Estado que essas empresas vão se dar conta que não podem mais continuar com este tipo de prática. Para este fim, a PEC do trabalho escravo é fundamental, pois permite a expropriação da terra onde for verificada a existência de condições análogas ao trabalho escravo.

A construtora MRV, que enfrenta dificuldades para entregar alguns imóveis no Rio Grande do Norte, entrou recentemente para a ‘lista negra’ do Ministério do Trabalho por empregar pessoas em condições análogas ao trabalho escravo. A Zara também enfrentou problemas..
As pessoas estão acostumadas a pensar que o trabalho escravo é uma coisa do campo. Mas na verdade não. A mentalidade da superexploração existe tanto no campo quanto na cidade, e é especialmente favorecida pelos fluxos migratórios. Há um grande fluxo de trabalhadores vindos de países vizinhos sem qualificação e em situação irregular. Uma mão de obra altamente vulnerável que vem para o país para ser explorada e tem medo de denunciar para não ser expulsa. Neste caso, a atuação repressiva é necessária e tem que ser forte e permanente. Penso que além de expropriar a terra ou restringir o crédito, é fundamental que se estabeleça uma responsabilidade pela cadeia produtiva. Todos os atores, incluindo o consumidor, devem estar atentos a esta situação e assumir sua parcela de responsabilidade. A Justiça do trabalho é pioneira ao adotar no primeiro semestre deste ano, em resolução do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, o manual de compras sustentáveis. Todos os órgãos da Justiça do Trabalho estão proibidos de adquirir qualquer produto de fornecedor que tenha sofrido condenação pela exploração do trabalho escravo ou trabalho infantil.

O Brasil se tornou recentemente a sexta maior economia do mundo. Ostentar altos índices de trabalho infantil e escravo não seria no mínimo contraditório?
Sem sombra de dúvida. Especialmente considerando a atenção que o Brasil desperta em todo cenário internacional e a admiração pela fidelidade aos compromissos assumidos internacionalmente, especialmente sob a ótica dos direitos humanos.

Segundo relatório recente da ONU, o Brasil é o quarto país mais desigual da América Latina. O país, no entanto, avançou três posições desde 1990. Como o senhor avalia esse avanço?
A resposta é relativa. Evoluir três posições apenas é muito pouco, mas há que se considerar que os esforços para eliminação da miséria do país foram intensificados mais recentemente. Este dado demonstra de um lado que há uma resposta positiva. De outro, mostra que há muito a  fazer. Sem dúvida, o Brasil precisa avançar mais rapidamente no ranking.

Os programas de transferência de renda têm força suficiente para tornar o Brasil um país mais igualitário ou teremos que conviver com pobreza e riqueza separadas por uma linha imaginária?
Os programas são importantes para o combate à pobreza e inserção social de grupos marginalizados. Mas é importante dizer que  as politicas públicas de transferência de renda,  sozinhas, não são capazes de produzir um impacto muito grande. Para que esse resgate social realmente ocorra é preciso universalizar a educação das crianças e a qualificação dos responsáveis pela família. Esses programas não podem se transformar em políticas meramente compensatórias.

Muitas crianças ainda trabalham. Falta escola para os filhos? Falta emprego que remunere bem os pais? Ou as duas coisas?
Faltam as duas coisas. Na verdade, falta também uma terceira. A solidariedade dos que venceram a barreira da pobreza e não se sentem responsáveis por isso. Para vencer este circulo vicioso é necessária uma intervenção do Estado e a solidariedade dos outros atores da sociedade.

Como ser solidário?
Votando. É preciso cobrar dos gestores públicos o efetivo compromisso com a resolução destes problemas que impedem o resgate da cidadania dessas famílias.  

O RN é um dos melhores colocados neste ranking. Algo a comemorar ou só o fato de estar no ranking é preocupante?
Eu vejo como um alento que deve servir de estímulo para que se redobre os esforços. Uma criança que deixa de ir para a escola para ajudar a família é um prejuízo inestimável. Estamos sacrificando um talento que nunca vamos conhecer.

Estamos assistindo ao julgamento do mensalão, considerado o maior da história da democracia brasileira. Podemos afirmar que a corrupção também é responsável pelo trabalho escravo e infantil no Brasil?
Eu computo a esta conduta imoral, que é a corrupção, uma grande parcela da responsabilidade pela dramática situação de exploração do trabalho escravo e infantil. Se tivéssemos menos corrupção e mais agentes comprometidos com o bem comum teríamos avançado mais no combate ao trabalho escravo e infantil.

Acredita na erradicação?
Acredito. Quando comecei minha carreira, no Ministério Público há 20 anos, havia 5,5 milhões de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. Hoje, temos 3,4 milhões. Tenho plena convicção de que verei uma diminuição ainda mais acentuada do trabalho infantil. A erradicação é possível. São necessários apenas alguns ajustes. O que me motiva é saber que podemos nos transformar num exemplo para os outros países também neste sentido.

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