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Como ver o mundo

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Cláudio Emerenciano
[ Professor da UFRN]
Não há como ignorar: o mundo está carente e sedento de amor. Sentimento que liberta e iguala todos os homens. Jesus Cristo testemunhou e legou o amor infinito: “Amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei”. O mundo, palco de misérias, injustiças, violências, ódios, egoísmos e conflitos parece descartar outro ensinamento do Cristo: “Misericórdia eu quero, não sacrifícios”. As transformações emergem do íntimo de cada homem. Do coração. Ainda outro ensinamento: “Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções: imoralidade sexual, roubos, homicídios, adultérios, ambições desmedidas, perversidades, fraude, devassidão, inveja, calúnia, orgulho e insensatez”. Eis desafios de todas as gerações. Agora e…? 

Entretanto percepções, circunstâncias, sensações, acontecimentos e personagens marcam o ser humano por toda a vida. Enraízam-se na alma, no recôndito de cada um, sedimentando referências ou juízo de valor no presente e no futuro. Geram associações no transcurso do tempo. Suscitam a impressão de que se repetem (“déjà vu”), como se o tempo retrocedesse, ou simplesmente fosse estático e imutável. Sem passado nem futuro. A memória sentimental e afetiva do homem transcende ao tempo.  Alça-o a voos reflexivos e dimensões espirituais, arrebatadores, fantásticos e inusitados. Permite-lhe descortinar a beleza e a essência da vida. Romancistas, poetas e pintores possuem atributo especial: captar o esplendor da vida e a complexidade da alma humana. O homem e o mundo são um só. Não é casual. É vontade de Deus.

Os povos e as civilizações se aprimoram, fundamentalmente, em decorrência de fenômenos como a interação e a comunicação sociais. O homem   desfruta laços coletivos e renova seus sentimentos. Assim identifica o conteúdo da felicidade. A partir do conhecimento de si mesmo. Não há alma coletiva sem sonhos, esperanças, fantasias, utopias e o querer de cada um.  Esse é um dos alicerces da filosofia socrática (séc. VI a.C.) e preceito da cultura ocidental. O silêncio e a solidão  não são fins, mas caminhos, fontes e meios, através dos quais o homem se interioriza. Do individual para o coletivo, a humanidade pode realizar ascensão espiritual, cultural, ética e moral. A consciência da dignidade é solitária. Individual. Silenciosa. Sua preservação é fruto da cultura de todos os homens. Valor inesgotável da civilização.  Elegia da condição humana. Interminável e incontrolável. Visão de Teilhard de Chardin.

 Um dos sintomas de crise nessa “aldeia global” emana da cultura do medo ao silêncio e à solidão. A humanidade se submete ao ritmo estressante, implacável, contínuo, de uma vida condicionada por valores materiais, utilitaristas, efêmeros e hedonistas (o prazer é o único bem possível). O consumo irrefreável e compulsivo é uma de suas manifestações. A televisão, a internet e as redes sociais, com seus instrumentos assustadores, magníficos e planetários, usurpam a prerrogativa de pensar, querer e questionar, senão de todos, pelo menos da maioria. É, infelizmente, o “admirável mundo novo”, preconizado por Aldous Huxley em 1932. Também chamado de domínio do “grande irmão” por George Orwell em seu devastador “1984”. Desfigura-se assim a condição humana. Há uma erosão do livre arbítrio. Uma das absurdas contradições atuais exibe que prospera, especialmente entre governantes e lideranças, em âmbito universal, a tendência para confundir fins com os meios. Ou muito pior: justificar uns pelos outros. Eis a perda, ou renúncia consciente, da ética e do humanismo. Postura em que se abdica do dever de reconhecer e consagrar cada ser humano como detentor de atributos infinitos na Criação. Bertrand Russel deplorava o egoísmo e a indiferença, que deserdam pessoas da legítima alegria de viver. O homem comum até parece não pensar, não duvidar, não exercitar sua humanidade. É submetido aos desvarios da mentira massificada. Como ficamos? E os valores espirituais, éticos e morais da civilização? E o peso da liberdade? Sobrevivem?

O Livro do Êxodo (34,28) diz que Moisés esteve com o Senhor durante quarenta dias e quarenta noites. Ao descer do monte Sinai, tendo nas mãos as tábuas do Decálogo, a pele do seu rosto resplandecia. Jesus, durante quarenta dias, nada comeu no deserto (Lucas 4,1), ao fim dos quais teve fome e repeliu as tentações: “Não tentarás o Senhor, teu Deus”. Nos jardins de Getsêmani (Mateus 26,36-46), solitariamente, orou e reafirmou sua missão: “Meu pai, se não é possível passar de mim este cálice sem que eu o beba, faça-se a sua vontade”. Transpirou sangue. Assim contemplava Jerusalém, que dormia. Sofria por seus habitantes e por toda a humanidade. Ninguém, em toda a História, esteve tão só quanto Ele na Cruz. Sua imolação foi um ato infinito de entrega. E, nesse instante, mais uma vez, testemunhou que o perdão é expressão pura de amor. É infinita doação: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lucas 23,34). Silêncio e solidão na Cruz. Ato insuperável para redimir o gênero humano. Gandhi, que não era cristão, lamentava que a humanidade não alcançasse plenamente o sentido universal, espiritual e humano da missão e da crucificação do Cristo. E nós, hoje?

Thomas Merton em “A vida silenciosa” mergulha no sentido do silêncio. Também diz que a solidão, partilhada com Deus pela fé (reflexão e oração), não é isolamento, segregação, exclusão, reclusão. É ascensão espiritual. É libertação pela interiorização. Voando noite adentro, sozinho, contemplando as estrelas e os pontos de luz lá embaixo, que referenciavam vida e sentimentos, Antoine de Saint-Exupéry anotava suas reflexões, depois transpostas para livros. O silêncio e a solidão eram apenas formas e ambiências (“Voo Noturno”). Diferentemente das rosas, “não há jardineiros para os homens”.  Cabe ao homem desvendar caminhos. Harmonizar-se com o sentido da vida. Cultivar sonhos, refletir, buscar e ouvir a sublime voz do silêncio.

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