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Comportamentos

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José Arno Galvão [ Advogado ]

À hora do almoço, Marília comenta sobre a lembrança que lhe veio de seu tio Remarque, quem, por essa época, pedia-lhe para comprar presentes destinados aos empregados e a outras pessoas que lhe prestavam serviço, entre as quais o carteiro. Lembrei do que fazia a entrega da correspondência lá de casa, quando residíamos na avenida Campos Sales. Quanta vez, ao encontrá-lo na rua, perguntava se eu ou qualquer um de meus irmãos ou das empregadas estávamos indo para casa. À resposta afirmativa, entregava-nos a correspondência, o que lhe poupava alguns passos a mais.

Era um tempo em que as pessoas conheciam aqueles que lhes serviam e eram deles conhecidos. Não só o dono da bodega ou do mercadinho, o lixeiro, o carteiro, o verdureiro, os vendedores fosse de cuscuz, de sorvete, de bolo de milho, de cavaco chinês, de pirulito, ou de puxa-puxa e, até, o garrafeiro conheciam os moradores de cada uma das casas e eram deles conhecidos. Para quem não foi daquele tempo, verdureiro era a pessoa que, com um calão, do qual pendiam, em cada lado, um balaio e alguns cestos menores, onde eram colocadas verduras, legumes e frutas, vendendo de porta em porta. E o garrafeiro, utilizando-se de um equipamento semelhante, exercia o mister de comprar jornais velhos e garrafas vazias. Aliás, lembro de ter ainda alcançado uma figura que logo desapareceu lá de casa, o entregador de pão, um sujeito que carregava os pães num balaio sobre a cabeça, protegida esta por uma rodilha de pano enrolado, e entregava os pães, colocando-os dentro de uma sacola de pano destinada exclusivamente a isso. Depois, em Tibau do Sul alcancei esse mesmo personagem, carregando os pães dentro de caçoás pegados à cangalha de um burro; os pães eram armazenados no paiol, onde ficava a farinha, pois eram fabricados em Goianinha e lá só chegavam uma vez por semana.

Era esse relacionamento que permitia a utilização da caderneta pelas mercearias. Era um caderno onde o dono da bodega, depois do mercadinho (quem, daquela época, não lembra de Seu Bianor, do mercadinho da av. Rodrigues Alves?) anotava as compras realizadas pelo freguês. Os valores anotados não eram discutidos e a liquidação era feita quando o salário mensal era recebido.

 A Natal naquele tempo era aquilo que alguém caracterizaria como cidade de muro baixo, isto é, lugar onde todos dão notícia da vida de todos. E, realmente, ia ela saindo daquele estágio em que as casas não dispunham de áreas externas, o que conduzia os moradores a levar para as calçadas as reuniões noturnas, ocasião para atualizar as conversas e fofocas do dia a dia, a pretexto de refrescar-se do calor, enquanto as crianças brincavam a correr pelas ruas em que o tráfego não constituía, ainda, motivo de preocupação, mesmo em vias como a avenida Deodoro, por onde circulavam não só os bondes, como os primeiros ônibus.

 Mas,logo vieram as casas dotadas de jardins, limitando-se com as ruas por muros baixos. No máximo, colocava-se um gradil. E passaram elas a ser equipadas com varandas, como a que Pai fez construir no extenso terreno comprado ao Desembargador Régulo Tinoco na av. Campos Sales, pertinho do Seminário de São Pedro, onde eu fui estudar interno pouco antes de lá ele ir morar. E essa varanda, que chamávamos simplesmente “a área”, sem outro adjetivo, passou a substituir a calçada como lugar de reuniões.

Por aí já se vê quanto de mudança ocorreu em um lapso de tempo relativamente curto, praticamente entre minha infância e a entrada na adolescência, cerca de dez, onze anos. De lá para cá, as coisas mudaram ainda mais. Lembro que, lá em casa, a porta lateral, por onde entrava-se no dia a dia, nunca era fechada a chave; no máximo, ficava “no trinco”, com a rótula aberta. Bastava apertar o trinco, empurrá-la e entrar. Os portões da frente da casa só eram inteiramente fechados à noite, para evitar que o cachorro fosse para a rua ou atacasse algum transeunte.

Mas a insegurança levou a alterações radicais no comportamento das pessoas. Para começar, os gradis, em geral mais decorativos que seguros, foram radicalmente reforçados, quando não substituídos por muros altos e portões munidos de cadeados, quando em metal, ou com fechaduras e ferrolhos se em madeira maciça. E vieram o olho mágico, permitindo visualizar quem se encontrava nas proximidades do local onde instalado, e agora as câmeras miniaturizadas, comunicando-se com um sistema de vídeo, mostrando todo o tempo a situação do entorno onde instalados. Se isso já constituía uma barreira bastante eficaz, isolando os moradores daquelas pessoas que lhes serviam, os condomínios, verticais ou horizontais, selaram definitivamente a im-possibilidade de comunicação.

Porém, não é só isso que contribui para a perda de determinados valores e o desaparecimento de alguns costumes. Mas isso é assunto para um próximo comentário.

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