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Contrapontos

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Cláudio Emerenciano
Professor da UFRN
As civilizações desmoronam quando perdem consciência dos seus fins. Os sonhos sempre alimentaram a busca da paz, da justiça e da liberdade. Pois são também caminhos de aprimoramento da condição humana. A miséria e a injustiça degradam o homem. Despojam-no dos seus valores. Subvertem o sentido de sua vida. A vida exibe, em todos os tempos, contradições e paradoxos que, muitas vezes, desafiam seu sentido. Geram – disse Anatole France em “Thais” – a perplexidade e o medo que atormentam os homens. Mas, invariavelmente, a luz desponta no fim do túnel das adversidades, dos retrocessos, dos sofrimentos e dos desencantos. Tanto no âmbito de cada um quanto no contexto da vida social. Pouco importa sua duração. Se considerarmos que as circunstâncias são predominantemente passageiras, efêmeras, imprevisíveis e surpreendentes, jamais permanentes, embora susceptíveis de repetição. Como algo que surge e desaparece ao sabor do tempo ou de ações humanas, comparadas pelo escritor Rafael Sabatini ao fenômeno do “fogo-fátuo” (espécie de claridade ou esplendor que surpreendia navegadores em alto mar). Assim entenderemos o espírito de obras como “David Copperfield” de Charles Dickens, “Os  miseráveis” de Victor Hugo,  “Os irmãos Karamazov” de Fiódor Dostoiévski e “As vinhas da ira” de John Steinbeck (Nobel da literatura). Sem falar na injustiça, impiedosamente infligida ao capitão Alfred Dreyfus, fruto da traição de oficiais superiores da França na guerra franco-prussiana (segunda metade do século XIX). Conjuraram-se para vender segredos de Estado ao inimigo. O grande escritor (membro da Academia Francesa) Émile Zola denunciou a trama à imprensa internacional da época. Dreyfus, anos depois do suplício de cárcere na “Ilha do Diabo”, foi inocentado e readmitido como coronel. No Brasil tivemos a prisão arbitrária, sem processo nem julgamento, de Graciliano Ramos, recolhido por anos na congênere “Ilha do Diabo” (baía da Guanabara). Dali resultou obra excepcional : “Memórias do Cárcere”. São epopeias humanas de sofrimentos, vilania, crueldade, opressão, mas, em seu contraponto, reconhecimento e exaltação àquela luz que dá forma e conteúdo à esperança, à paciência, à perseverança e à obstinação. São excepcionais mosaicos da era vitoriana (Inglaterra, século XIX), dos antecedentes da revolução Russa de 1917, dos desdobramentos sociais, morais, éticos, culturais (antropológicos) e econômicos da depressão (a partir de 1929) nos Estados Unidos e do obscurantismo do “Estado Novo” no Brasil. Importa constatar – ensinou Gandhi – que o mal se dissipa. É destruído sucessivamente por ideias, crenças e atitudes que dão corpo e substância ao bem. Pois o homem desfaz o mal recorrendo à essência do seu ser; fazendo desabrochar um sentimento infinito, que o identifica e o faz convergir para Deus: o amor. Eis a identificação de elos com a eternidade. É só querer buscá-los e identificá-los. O que mais toca os corações dos homens planetariamente são as coisas que dão sentido à vida. O mundo é heterogêneo dentro da convergência.

Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Câmara Cascudo, entre outros, consagraram seus estudos e reflexões à “civilização brasileira”. Apesar de antagonismos, que ainda germinam miséria e desigualdade social, não se pode ignorar valores, ideias, aspirações, o ser, o sonhar e o querer dos brasileiros. Cascudo, por exemplo, em “Cinco livros do povo”, detectou no imaginário da cultura popular, particularmente no interior nordestino, percepções, fantasias, relações e tradições procedentes da Provença medieval (França). Esses valores culturais nos chegaram através da colonização. As civilizações são indiscutivelmente interdependentes. Gore Vidal, em “Criação”, revelou e destacou fantásticos vínculos e semelhanças entre as civilizações da Grécia, Pérsia, Índia e China cinco séculos antes de Cristo. O “habeas corpus” nasceu na Inglaterra em 1215, no primeiro surto de rebeldia ao poder absoluto dos governantes. Em outros países e continentes, inclusive ex-colônias britânicas, revoluções se deflagraram invocando o mesmo instituto: conquista da civilização. Contrapontos se sucedem nessa “aldeia global”: una, complexa e indivisível.

 O Jardim de Luxemburgo, em Paris, à margem esquerda do Sena, é uma espécie de portal da Sorbonne (nome tradicional da Universidade de Paris). Ali se encontra uma estátua em corpo inteiro de Voltaire. Em seu pedestal sua máxima mais célebre ainda hoje instiga o visitante: “posso não concordar com nenhuma das vossas palavras, mas defenderei até à morte o vosso direito de pronunciá-las”. Um dos dogmas da vida civilizada. Mas algo ocorreu num encontro com Johann Sebastian Bach, na corte de Frederico II da Prússia. O filósofo francês se perturbou ante a simplicidade, a lucidez e a fé do gênio musical. Bach compusera pouco antes “Jesus, Alegria dos homens”. Disse-lhe que a escala musical, de sete notas, do dó até o si, reiniciando-se com outro dó, infinitamente, é a linguagem do universo. As oitavas, portanto, sucedem-se sem limites. Seu ponto de sublimação é o ômega, o infinito, o princípio e fim do universo. Seu Criador: Deus. Bach, tranquilo e peremptório, sereno e suavemente, confidenciou: “Tudo na vida eu fiz por amor. A minha vida se motivou no amor de Deus pela humanidade e no meu desejo de compartilhá-lo”. Luz sem fim… 

Tudo na vida tem um sentido. As circunstâncias impregnam cada coisa, acontecimento, gesto, ação, pensamento, de um peso e uma direção. No meio de um deserto, todo o ouro do mundo perde seu sentido. Não é nada. Enquanto o usufruto partilhado de uma garrafa de água, de um poço, mesmo lamacento, ou de um oásis, significa vida, comunhão, solidariedade e sublimação da condição humana. Nestes tempos de tantos horrores, de bombas e mísseis que ceifam vidas inocentes, há uma escalada de crueldade apocalíptica. Convém avaliar a causa e os desdobramentos dos contrastes sociais. Desumanos. Até em nosso país e em nossa cidade…

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