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Corredores e ato profissional

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Marcos Lima de Freitas
Médico, presidente do CREMERN

A palavra corredor pode ser utilizada para definir o indivíduo que corre, mas esta não será a definição utilizada no contexto que se segue. Utilizaremos essa palavra como definição de um lugar de passagem de pessoas ou de objetos. Ambiente no qual se circula para chegar a algum destino. E qual seria a relação entre um ambiente de corredor e ato profissional? Nenhuma relação.

Relatarei um caso de ficção que se assemelha a diversos casos reais vivenciados por cidadãos brasileiros em praticamente todo território nacional.  Era um dia de sábado e o Sr. Manoel, agricultor aposentado que seguia morando no sítio, comemorava os seus 72 anos de idade, bem vividos numa pacata cidadezinha do interior. Aquele era um dia de festa, de reunião familiar, bolo na mesa, bebida fresca e alegria entre os presentes. O Sr. Manoel já apresentava dificuldades para caminhar e sentia tonturas de vez em quando, mas isso passava logo e não via necessidade de ir ao médico que visitava sua cidade duas vezes por semana e atendia dezenas de pacientes, sendo quase impossível conseguir uma consulta com o doutor. Naquela noite, talvez por causa da emoção, a tal tontura voltou a ocorrer e ele sofreu uma queda ao desequilibrar-se. Não conseguiu levantar-se e os filhos logo perceberam que algo mais sério tinha ocorrido. Foi levado para a cidade mais próxima onde tinha um hospital. Lá chegando, o médico logo diagnosticou fratura do fêmur. Não havendo condições para o atendimento, foi transferido para a capital, onde foi confirmado o diagnóstico de fratura do fêmur, importante osso da coxa. Teria que permanecer internado e o hospital estava lotado. Não havia leitos disponíveis e os que chegavam eram internados onde havia espaço, nos corredores do hospital. O Sr. Manoel receberia a visita dos médicos e os cuidados de enfermagem no corredor. Ele permaneceu nessa condição por mais de uma semana, quando foi transferido para enfermaria. Hoje ele conta sua aventura pela capital, não esquecendo o período em que permaneceu no corredor, sem nenhuma privacidade, sem poder relatar ao médico o que sentia e sofrendo o constrangimento de receber seus cuidados básicos diante de estranhos. Explica nas suas prozas que a equipe que cuidava dele se sentia constrangida em ter que trabalhar naquelas condições. Não havia privacidade para um diálogo íntimo, parte fundamental da relação médico/paciente. A enfermagem fazia o possível para mantê-lo confortável, mas era impossível numa maca estreita. Mal dormia porque constantemente havia circulação de macas e pessoas.

Este relato revela uma realidade que afeta a dignidade humana. Enfermos internados em corredores, sem privacidade, sem conforto, justamente em momento de fragilidade física e psíquica, provocada pela enfermidade.

Profissionais de saúde estão sendo submetidos á prática de atuar nos corredores dos hospitais, ambientes destinados à circulação e que não permitem uma atuação adequada. Priva o médico de realizar uma história clínica mais aprofundada e de examinar da forma correta. Falta privacidade para realizar o atendimento de enfermagem. Expõe o paciente ao risco real de um mal resultado.

Por que profissionais aceitam tal condição de trabalho, mesmo sabendo que se distanciam do modelo ideal de atuação? Esse modelo real seria o modelo possível? Para responder a primeira pergunta poderíamos citar o lado humanístico do médico e demais profissionais da saúde: “farei tudo o que estiver ao meu alcance para amenizar o sofrimento do meu paciente”. Para a segunda indagação o médico responderá que não. O modelo real nas condições apresentadas não poderá ser considerado um modelo possível porque compromete a base da assistência. Atendendo em corredores estaremos sempre distantes do modelo ideal e a condição básica para nos aproximarmos de um modelo possível será aniquilar com esta prática. Mudar essa realidade e buscar o modelo ideal é responsabilidade urgente de toda sociedade, incluindo o Sr. Manoel.

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