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Crianças natalenses são vítimas de agressões domésticas

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PERIGO - Metade das crianças agredidas em Natal tem pais envolvidos com drogas

Uma criança indefesa. Um casal que deveria protegê-la. Um surto de violência dentro do próprio lar. Um crime. Não, este não é mais um relato sobre a morte da garota paulista Isabella Nardoni, é apenas um resumo do que ocorre diariamente em diversos lares de todo o Brasil. A violência infantil é uma constante, nem sempre ganha as páginas dos jornais, mas nem por isso os casos são menos chocantes que o da menina atirada do sexto andar de um prédio.

A imensa maioria das denúncias que chegam ao Conselho Tutelar da Zona Oeste de Natal, não envolve famílias de classe média como a de Isabella Nardoni, mas incluem relatos tão ou mais graves quanto o do assassinato que chocou o país. “Atendemos um caso de uma criança que tinha seis meses e a primeira vez que deu entrada no Walfredo Gurgel estava com a perna quebrada. Três meses depois, deu nova entrada com fêmur quebrado, costelas fraturadas, sem uma unha e toda queimada de cigarro”, revela a conselheira tutelar Ecione Medeiros.

O coordenador do Conselho da zona Oeste, Marcílio Martins, lamenta que esse não seja um exemplo único. “Encontramos um jovem acorrentado pelos pés, em casa”, afirma, referindo-se a um adolescente cujos pais utilizavam esse “artifício” para tentar mantê-lo longe do mundo das drogas. Outro exemplo recente é o da pequena A., de seis anos de idade. Ela e sua irmã B., de oito anos, eram vítimas do que a caçula chama de “pisas” do pai, envolvido com drogas.

Porém, bater nas filhas não era a violência mais comum cometida contra as duas. Elas eram alvo de uma agressão também corriqueira e que, infelizmente, para muitos sequer se enquadraria no quesito violência: a omissão. Apesar da pouca idade, as irmãs eram deixadas trancadas, o dia inteiro, em um quarto, abandonadas à própria sorte, se alimentando apenas do que uma avó trazia, enquanto seu pai ia para as ruas alimentar o vício.

A mãe, também envolvida com drogas, não se importava com o destino das filhas. O pai, além de abandonar as pequenas, também era acusado de praticar atos obscenos na frente das duas. Uma tia, E. V., indignada com a situação, procurou o Conselho Tutelar e foi ao local acompanhada de conselheiros e da Polícia Militar. Ela teve de pular uma janela para poder libertar as sobrinhas. Ambas, segundo relatos dos presentes, em “estado deplorável”.

Após serem retiradas do local, as meninas foram levadas para a casa de parentes e a opinião de A., em sua nova morada, não deixa dúvidas. Apesar da pouca idade, ela é clara. “Quero ficar com minha tia.” Na nova residência, A. tem a companhia dos primos, a liberdade das crianças e ainda freqüenta a escola, algo novo na vida da garota. “Você olhava para as meninas e sentia pena. Foi um caso que realmente me deixou abalado”, admite Marcílio Martins.

Outro fato semelhante ocorrido recentemente em Natal, que também não obteve espaço na mídia, foi o de duas meninas, de 11 e 13 anos, que eram sexualmente abusadas pelo padrasto. C., a mais velha, foi levada para uma casa de abrigo após as primeiras denúncias. Logo depois, porém, vizinhos da residência flagraram o adulto tentando cometer o mesmo abuso com a mais jovem, D..

Falta estrutura para combater crimes

Tão grave quanto a violência infantil é a falta de uma estrutura para proteger crianças e adolescentes vítimas dessa violência. Os conselheiros tutelares da zona Oeste garantem que essa é a realidade em Natal. “Quando há denúncia de agressão física, um das primeiras coisas que fazemos é encaminhar cópia para a delegacia especializada (DCA), mas infelizmente, não existe harmonia entre conselho e poder judiciário e não obtemos resposta sequer sobre o que é feito”, critica Ecione Medeiros.

O “relacionamento” não é difícil apenas entre conselho e delegacia. “Falta estrutura na rede de assistência como um todo. Só nos casos de adoção essa rede funciona. Se existisse harmonia entre Conselho Tutelar, rede de atendimento e o poder Judiciário, iria facilitar a vida de todos. Teríamos condições de resolver mais problemas e evitar outros”, enfatiza o coordenador do conselho, Marcílio Martins. 

Porém, a realidade está distante do ideal. Ecione critica a omissão do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente (Comdica) e a falta de estrutura de retaguarda aos atendimentos. “O órgão que deveria fazer a ligação entre todos que trabalham com essas crianças é o Comdica, mas é um órgão ausente. Já as casas de abrigo (três do Município e quatro do Estado) não possuem estrutura adequada”, diz.

Algumas dessas casas, acrescenta Marcílio, podem ser considerados verdadeiros “depósitos de criança” e nem mesmo o dever de abrigar e proteger os jovens encaminhados, conseguem cumprir. Há alguns anos, uma jovem que oficialmente estaria abrigada, foi assassinada em um bairro distante da casa de passagem. Já recentemente, foi negada a permanência de outra adolescente em um abrigo, mesmo ameaçada de morte, devido ao seu envolvimento com drogas.

A questão das drogas, aliás, envolve cerca de metade das denúncias que chegam ao conselho. Nesses casos também não há o atendimento necessário. “Não existe centro de recuperação para drogados. Para conseguir internamento, é uma briga. Tem de requisitar ao juiz, para obter uma vaga no Onofre Lopes, ou no João Machado. Ou então usamos recursos próprios do conselho, quando resta algum, e enviamos o adolescente para centros de recuperação pagos”, revela o conselheiro Erinelson Morais.

A falta de solução dos casos leva ao descrédito da população, que se revolta ao ver livres, andando pelas ruas, os autores de crimes “assombrosos” contra filhos ou enteados. “Não conhecemos pais que tenham sido punidos perante a lei, a não ser de um caso que já tramitava no conselho há mais de um ano, em que a criança era abusada pelo padrasto, e somente este ano foi vinculada na imprensa a prisão do criminoso”, aponta Ecione Medeiros.

Marcílio Martins reconhece que “pode haver outros casos denunciados diretamente à delegacia, que não passem pelo conselho”, mas isso representa, ao menos, uma falha na comunicação, uma vez que a responsabilidade sobre o destino das crianças vítimas da violência é do conselho. “A gente não está pedindo detalhes dos processos, estamos querendo apenas uma resposta sobre o que foi feito das denúncias”, complementa Ecione.

Essa falta de informação inclusive sobre os pais, prejudica a atuação dos conselheiros. “Precisamos saber, pelo menos, o que foi feito em relação aos autores da violência. Soubemos que a mãe da criança que deu entrada no Walfredo Gurgel (com fraturas e queimaduras), por exemplo, já está grávida. E aí, o que vai ser desse novo filho? Não temos nem como acompanhar, porque sequer temos informações do paradeiro desses pais”, lamenta.

Desestruturação familiar é uma das principais causas

A pobreza, falta de escolaridade, desemprego e até mesmo ausência de esperança no “futuro melhor”, comuns nas regiões mais pobres de qualquer cidade, estão ligados diretamente a diversos dos casos que chegam aos conselhos tutelares. Na zona Oeste, contudo, a desestruturação das famílias é apontada como a questão mais relevante. “Muitas mães não tem estrutura psicológica para criar um filho e, ao se separarem dos maridos, acabam levando para dentro de suas casas companheiros que nem sequer conhecem”, observa Marcílio Martins.

Ele considera que dentre os integrantes das famílias, os “padrastos” são muitas vezes os autores das agressões e abusos. Ecione, por sua vez, indica a origem de muitos dos casos envolvendo os pais biológicos. “Eles, por vezes, cometem pecados na criação, ao não imporem limites. Quando a criança chega a uma certa idade, os pais não conseguem mais se fazer respeitar, se impor, e partem para a pancada, quando na verdade bater em uma criança não resolve, nem educa”, descreve.

Ela lembra que o cenário vivido pelos natalenses carentes é bastante diverso do apresentado em São Paulo. “Isabella é de uma família de um poder aquisitivo maior, com outra educação e você não compreende porque aquilo aconteceu. Nos nossos casos, temos crianças sem opção de vida, sem educação, em famílias onde há um desequilíbrio total. Isso não justifica de forma alguma a violência, mas você acaba compreendendo o que muitas vezes leva a isso”, afirma.

O coordenador do conselho, porém, aponta que casos de violência em “famílias modelo” também ocorrem, mesmo em bairros de classe baixa. “Houve um situação de abuso que só viemos tomar conhecimento após a morte do pai, porque nem mesmo a mãe sabia que ele seduzia a filha, porque ele a ameaçava para não contar.”

Sociedade precisa ficar alerta

O caso Isabella Nardoni pode ter ao menos um lado positivo: alertar a sociedade em geral quanto aos casos de violência contra crianças. Na Delegacia Especializada (DCA), em Natal, somente  nos primeiros três meses do ano foram registrados 143. “Devemos aproveitar essa comoção geral, essa revolta, para chamar atenção quanto aos vários casos que ocorrem diariamente, no Brasil, no Nordeste, em todos os lugares”, afirma a vice-presidente do Conselho Municipal de Direitos da Criança e Adolescente (Comdica), Telma Lúcia Menezes.

Ela lembra que cerca de 80% dos registros relacionados a violência doméstica contra essa parcela da população têm como autores das agressões os próprios pais biológicos e muitos têm resultados graves, como o da morte de Isabella. “Algumas crianças são privadas de seus sentidos, de seus membros, queimadas com água, marcadas a ferro”, lista a conselheira. Para Telma, o pior pecado da sociedade é a omissão frente as práticas de violência, das quais muitos são entendidas até hoje como uma “forma de educar” e um “direito dos pais”.

“Não só vizinhos vêem e não denunciam. Muitas mães também acabam retirando a queixa, quando percebem que seu marido, que geralmente é quem sustenta a casa, pode ir preso, ou algo assim”, critica a vice-presidente, complementando: “As crianças não podem ser privadas de seus direitos e todos somos responsáveis e devemos denunciar esses crimes.”
Telma Lúcia reconhece que ainda falta uma melhor sintonia entre os diversos órgãos que atuam na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, mas garante que o Comdica tem trabalhado no sentido de melhorar esse relacionamento. “As instituições têm se esforçado para cumprir suas funções, o que precisa é haver um melhor entrelaçamento, pois hoje não se fecha o ciclo das providências”, explica.

Segundo ela, o conselho tem o papel de monitorar as políticas públicas em defesa das crianças e adolescentes e o Comdica tem buscado articular as diversas entidades nesse sentido. “O nosso maior desafio é mesmo convencer a população e os governos que a Constituição tem de ser respeitada e que crianças e adolescentes precisam ser prioridade, sob pena de continuarmos vendo milhões de casos como o de Isabella.”

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